sábado, 18 de fevereiro de 2012

Tu que cuidas de mim . . .

  " Tu que cuidas de mim , que vês ?
   Quando olhas para mim que pensas ?
   Sou uma velhota rabugenta e já meia demente , que se baba quando come e que nunca responde aos teus contínuos "vá ! tente !", parecendo que não presto atenção ao que dizes .
   Sou uma velhota que perde as meias e os sapatos , e que parece dócil à tua maneira de lhe dares banho e lhe ministrares as refeições . . .
   É isto que pensas ? É isto que vês ?

   Então abre os olhos , que eu , aqui sentada e tranquila , agarrada à minha bengala , vou dizer-te quem sou .

   Eu sou a última de dez irmãos . Tive um pai e uma mãe , e todos gostávamos muito uns dos outros .
   Fui donzela de dezasseis anos com asas nos pés , sonhando com um noivo que em breve encontraria .
   Casei aos vinte e o meu coração ainda rejubila de alegria com a lembrança desse belo dia .
   Tive um filho aos vinte e cinco .
   Vi-o crescer depressa demais , mas a quem ainda me prendem fortes laços de afeição .
   Quando cheguei aos quarenta e cinco , ele saiu do ninho , do lar , para construir o seu próprio ninho . . .
   Mas eu fiquei com o meu marido que velou por mim .
   Aos cinquenta anos , de novo bebés brincando ao meu lado ; são os meus netos e eu revejo-me nessas crianças . . .

   Mas eis que chegam os dias negros : o meu amado morreu .
   Olho para o futuro , tremendo de medo , pois o meu filho está muito ocupado a criar os seus .
   E eu penso nos anos passados e no amor que conheci .
   Penso : já sou velha e a natureza é muito cruel , pois diverte-se a passar a velhice por tola .
   O meu corpo definha-se , a beleza e a força abandonam-me , e há agora aqui uma pedra onde havia um coração .
   Mas nesta velha carcaça , há uma rapariguinha que sonhou muito e que muito amou .
   Lembro-me das alegrias , lembro-me das tristezas e, de novo , sinto a minha vida . E de novo amo .
   Repenso os anos curtos que passaram tão depressa , e aceito esta realidade implacável , de que tudo neste mundo é passageiro .

   Então , tu que cuidas de mim , abre bem os olhos para esta velha rabugenta e meio tola , e descobre não o que te parece ver , mas aquilo que eu sou realmente : uma história . . . que tu amanhã também podes ser . 
   Olha bem para mim , e ver-me-ás melhor . . ."

              - Texto encontrado no espólio de uma falecida num Lar de Terceira Idade e dirigido à funcionária que mais tratou dela .
   

1 comentário:

Mirror disse...

A vida é um momento... nunca adies o que ela te oferece de melhor... nunca deixes que alguem bloqueie a tua criação. A vida é tua!! Esta é uma estória que todos vamos contar com mais ou menos cor.. com mais ou menos amor.. A vida é como uma tela inacabada em que cada um de nós, vai pintando as nuances que vivenciamos com o nosso ritmo, com as nossas vivências.. e tudo isso é único.. e é exclusivamente construido por ti...é Tua.