quarta-feira, 14 de março de 2012

Enquanto se colocarem interesses de indivíduos e grupos de uma só espécie acima do bem comum da Terra e de todos os seres , enquanto não nos colocarmos no lugar do outro antes de qualquer pensamento , palavra ou acção que o afecta , continuaremos a ser velhos répteis , grotescamente sofisticados em termos científico - tecnológicos , mas 500 milhões de anos atrasados e em risco de extinção .

   Num livro recente , "Doze passos para uma vida solidária" , Karen Armstrong mostra que o grande desafio para vivermos hoje em harmonia numa comunidade global é aplicar a Regra de Ouro de toda a ética , comum às religiões da humanidade e imperativo laico : "Não fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem" ; "Fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem" . Isso implica a experiência de se colocar no lugar do outro , a em-patia ou com-paixão , não o ter pena emocional e condescendente , mas o assumido abandono da gravitação em torno de si mesmo para ser capaz de ver e sentir o mundo como o outro o vê e sente . Uma experiência de descentramento , de desobstrução do espaço ocupado pelo ego , individual ou colectivo , para sentir em si o que o outro sente , dor ou alegria .
   A razão profunda da actual crise é que a rápida evolução científica e tecnológica não foi acompanhada de uma igual evolução ética e espiritual , fazendo com que indivíduos , grupos ou nações sujeitos aos mais primitivos instintos e emoções detenham sofisticados mecanismos de poder , exploração e destruição militar e económica . Temos uma civilização global , em termos económico-tecnológicos , mas não uma consciência ética global .
   Outra potencialidade reside todavia em nós , com o neocórtex e mais : o espírito ou natureza profunda da mente , cujas naturais qualidades são a consciência global e a empatia amorosa e compassiva . São elas que  nos permitem colocar-nos no lugar do outro , não só dos nossos familiares , amigos ou membros do mesmo grupo , clube , empresa , partido , nação , religião ou espécie . São eles que ao invés dos velhos répteis , nos permitem alargar progressivamente o círculo da nossa consideração e afecto , ao ponto de respeitar e amar os próximos como a nós mesmos , sem excluir inimigos nem membros de outras espécies . São elas que nos permitem a empatia com todos os que sofrem e são felizes e não sermos indiferentes aos pobres , doentes e sem abrigo , aos que padecem fome e sede , aos explorados , oprimidos e violentados , homens ou animais . É essa natureza profunda , à medida que se libertar de parcialidades , que nos permite sentir igualmente a dor do desempregado , do recluso na prisão ou do cão no canil  , do porco , frango ou vaca no matadouro e do touro na arena . Simplesmente porque é dor , independentemente de quem a sente . E é a nossa natureza profunda que nos permite sentir ainda compaixão por todos os que são responsáveis pelas dores dos outros , agindo sem ódio contra essas acções .
   Do cultivo de uma consciência ética global , abrangente de todas as formas de vida , depende sairmos desta crise para uma nova civilização . Só a cultura da visão global , do amor e da compaixão pode salvar o mundo . Desenvolvê-la em todas as esferas da vida pública e privada , a começar pela educação , é o maior imperativo e investimento de cada um de nós e de todo o governo que venha a ser digno desse nome . Enquanto se colocar a economia e as finanças acima da sabedoria , da compaixão e de leis que as expressem  , produzir riqueza será sempre para benefício de poucos e prejuízo da maioria . Enquanto se colocarem interesses de indivíduos e grupos de uma só espécie acima do bem comum da Terra e de todos os seres  , enquanto não nos colocarmos no lugar do outro antes de cada pensamento , palavra e acção que o afecta , continuaremos a ser velhos répteis , grotescamente sofisticados em termos científico-tecnológicos , mas 500 milhões de anos atrasados e em risco de extinção .

   Este texto foi publicado na revista CAIS do mês de Fevereiro e é da autoria de Paulo Borges , docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa , e director da revista Cultura entre Culturas .

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