Há dias, chocou-me a notícia segundo a qual um poeta palestiniano, preso há cerca de dois anos, foi condenado à morte por "insulto a Deus". Arrepiei-me com esta atitude. Não entendo que se mate em nome de Deus. Um poeta encerra em si a poesia do verdadeiro Deus. Sua graça? Ashraf Fayadh.
Hoje, li que um físico iraniano foi suspenso por ter "voz demasiado aguda", como se isso fosse sinónimo de feminilidade e, consequentemente, motivo para o retirar do ensino. Ao ler a história verifico que a comissão cultural o questionou sobre que "lugar ocupa Deus nas suas aulas"? A resposta, científica, deve ter-lhe saído de chofre, "a universidade paga-me para dar aulas e, como profissional da matéria, só falo de Física". E faz muito bem, pensei eu. Sua graça? Qasem Exirifard. Não foi condenado à morte, mas não pode ensinar e está revoltado.
No primeiro caso temos um poeta, no segundo um físico. Vítimas da "presença de um Deus". Mas que raio de Deus é este que mata poetas e expulsa cientistas? Só pode ser um Deus triste que foi aprisionado pelos homens. O mal dos homens foi terem agrilhoado Deus, impedindo-O de desfrutar a sua verdadeira essência, liberdade cheia de amor infinito.
Comecei a ouvir a falar de Deus desde muito cedo, às tantas ainda não devia saber balbuciar as palavras mais simples. Com o tempo comecei a construir uma ideia a Seu propósito em contraste com o que ia ouvindo. Era comum ouvir que Deus castigava. Sempre que fazia uma "asneira", e deviam ser muitas, massacravam o meu pequeno cérebro com várias frases em que a ameaça e o castigo de Deus eram uma constante. Sempre que acontecia algo a alguém, nomeadamente tragédias, ouvia, invariavelmente,: - "Foi castigo de Deus"! Eu, apesar de não compreender bem o mundo e os homens que me cercavam, comecei a duvidar dessa ideia tenebrosa. Na altura não se podia refilar ou argumentar contra os adultos, padre, professor ou as beatas de farto buço e lenço na cabeça, sempre a ameaçarem, por tudo e por nada, as pobres crianças. Agora, a uma distância muito razoável, consigo analisar o meu sorriso a propósito desses comportamentos, um sorriso cínico a bailar nos lábios de uma criança. Para mim, Deus teria um outro significado, não podia ser nada do que diziam. "Confundia-O" com o cheiro intenso a erva fresca das manhãs de maio, o calor avermelhado que acompanhava o anoitecer prolongado dos dias compridos, quando no cimento brincava com as minhas caricas a fingir de ciclistas da volta a Portugal, ou as noites explosivas de estrelas em que os riscos de Deus se faziam sentir de vez em quando, misturando-se com a suave brisa, a saber a algodão doce, que subia do rio conjuntamente com os sons insistentes das cigarras nas noites de verão. Para mim, isso deveria ser Deus, algo livre, doce, quente, suave e tranquilizador.
Nunca entendi por que razão O aprisionavam no sacrário. Diziam que Ele estava ali. Era a sua morada. Um dia, sabendo onde o sacristão colocava a chave, atrevi-me a libertá-Lo. Entrei sozinho no templo com dois objectivos, vê-Lo e libertá-Lo. No entanto, ao aproximar-me do altar, uma figura negra e monstruosa, onde conseguia ver apenas o cabeção branco, interpelou-me junto à porta da sacristia: - O que é que estás aqui a fazer? Surpreendido, disse: - Nada! - Nada? A sua voz, tonitroante, assustava qualquer um, até o diabo em pessoa. - Bem, vim ver o menino Jesus! - Tu? Vieste ver o menino Jesus? Desaparece daqui antes que leves uma bofetada. Xô! Fora daqui. Às arrecuas, batendo em tudo, inclusive escorreguei, ferindo um joelho já massacrado, consegui correr pelo templo e fugir. Depois, sentei-me nas escadas de granito, cujo calor conseguiu acalmar o frio que sentia e pensei: - Sacana do padre. Não deixou que libertasse Deus. Ele continua preso!
Pois. Se os homens deixassem de O aprisionar, o mundo seria muito mais feliz. Deus acabaria por se manifestar de forma livre como só uma criança consegue saber, poupando poetas, físicos e...