No inverno, os vírus e as bactérias que habitam o nosso corpo proliferam, transmitem-se mais facilmente e provocam danos. Mas estudos recentes indicam que a solução não passa pela limpeza extrema e pelo seu extermínio. Neste artigo, publicado originalmente na Revista de 15 de dezembro de 2012 e que agora republicamos, são explicadas as vantagens em manter vivos certos organismos, que constituem o nosso microbioma
CHRISTIANA MARTINS
Mário de Sá Carneiro escreveu, Adriana Calcanhoto cantou - "Eu não sou eu nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio". E nós não somos só os 23 mil genes e os dez biliões de células, somos também os cem biliões de bactérias que habitam o nosso intestino e os muitos biliões que estão na pele, boca, cavidade nasal e no aparelho urinário. Todo um outro "eu" que num adulto chega a pesar dois quilos. Mas, sobretudo, somos o resultado desta convivência, nem sempre pacífica.
Durante a gravidez somos mantidos num ambiente estéril. Quando nascemos, trazemos a memória genética dos nossos antepassados e vamos construindo uma memória ambiental, com base no que ingerimos, tocamos, respiramos. Para explicar como tudo começa, é clássica a referência às pesquisas de Philipp Semmelweiz, médico húngaro do século XIX, que percebeu as consequências mortíferas para as mães e os bebés de os médicos e as parteiras não lavarem as mãos antes de acompanharem os partos. Porquê? Porque o nosso primeiro contacto com o mundo real dá-se no ato do parto e, a seguir, com as mãos que nos recebem. São os primeiros passos para a construção do nosso microbioma, esta espécie de outro eu, formado pelo conjunto de micro-organismos que nos habitam.
À semelhança do genoma humano, o microbioma é o património genético dos micro-organismos que vivem com o ser humano. A comunidade dos minúsculos seres que residem em diversos sistemas do corpo, do aparelho respiratório ao gastrointestinal, da pele ao aparelho geniturinário, é classificada de microbiota. Os especialistas já perceberam que devem ser considerados parceiros imprescindíveis na obtenção de um adequado estado de saúde e alertam para as consequências negativas do afastamento da natureza, da alteração de hábitos alimentares e da generalização da utilização de antibióticos.
Como explica Mário Morais de Almeida, coordenador do Centro de Imunoalergologia dos Hospitais CUF, "para além das influências genéticas, a epidemia da doença alérgica ocorrida nas últimas décadas (asma, rinite alérgica eczema, alergia alimentar), o aumento recente da incidência de doenças autoimunes (artrite reumatoide, lúpus, esclerose múltipla, diabetes), a eclosão de doenças inflamatórias intestinais (doença de Crohn, colite ulcerosa) entre muitas outras, são algumas das doenças crónicas em que a modificação ou desequilíbrio do microbioma, direta ou indiretamente, está envolvido".
Este mundo só agora começa a ser devidamente estudado, percebendo-se que até doenças como o autismo poderão estar relacionadas com o microbioma intestinal. Em causa estará a produção de substâncias chamadas fenóis, fabricadas por bactérias para erradicar outras competidoras, mas que são tóxicas para as células humanas. Para neutralizar os fenóis, o corpo produz substâncias à base de enxofre, que, se for escasso, pode prejudicar o desenvolvimento do cérebro. Qual a relação com o autismo? Ainda é difícil garantir, mas indivíduos com esta doença apresentam problemas no metabolismo do enxofre.
A dificuldade é que ao longo de todo o século XX, os médicos lutaram contra as bactérias tendo como principais aliados os antibióticos.
E, quando estes entravam em cena, matavam tudo ou quase tudo que encontravam pela frente. Mas esta abordagem está a mudar desde que os cientistas começaram a alertar para a importância de manter no organismo as bactérias que ajudam a saúde. Um dos caminhos a explorar será inclusive o "transplante" de bactérias. Já se tornou claro que a conceção de que os micro-organismos são inimigos e de que devemos viver num mundo absolutamente higiénico, está ultrapassada.
Temos de ser seletivos e eliminar apenas os mais agressivos.
"Adequados e razoáveis hábitos de higiene, o voltar a pisar a terra, ou seja, o contacto habitual com a natureza, a promoção do aleitamento materno e do consumo da dieta mediterrânica, a prevenção de infeções e o uso muito criterioso de agentes antibacterianos são algumas das medidas com efetivo potencial na proteção da comunidade de micro-organismos que convivem positivamente com as pessoas", ensina Mário Morais de Almeida.
Começa-se cedo a construir um microbioma positivo para a vida futura. A microbiota, ou flora intestinal, por exemplo, desenvolve-se desde os primeiros dias de vida, tornando-se essencial nos processos de reconhecimento e tolerância imunológica, e o seu perfil depende do tipo de parto (normal ou cesariana) e da forma de aleitamento (materno ou fórmulas lácteas).
Os micro-organismos também começam logo a trabalhar. O leite materno contém carbohidratos chamados glicanos que não são digeridos pelas enzimas humanas mas são pelas bactérias. A microbiota produz vitaminas, como B2, B12 e ácido fólico. Nos bebés produz mais ácido fólico do que nos adultos. E o microbioma de um adolescente rural do interior do Malawi será diferente do de um jovem europeu urbano. Como o de uma criança da década de 50 será distinto do de uma que consuma junk food habitualmente.
Ainda é cedo para se conhecer a totalidade do potencial do microbioma e a sua imutabilidade, mas o bacteriologista Miguel Viveiros, do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) não tem dúvidas quanto à necessidade de se modificarem as abordagens terapêuticas dos processos infecciosos: "Há uma enorme falência das estratégias clássicas e têm de ser encontradas alternativas. A campanha europeia de alerta ao aumento da resistência aos antibióticos é sinal desta situação." E, por isso, mesmo os incómodos processos de vaginoses bacterianas ou fúngicas começam a ser tratados de formas alternativas.
Estes organismos oportunistas e patogénicos, como o fungo candida albicans, vivem habitualmente no sistema geniturinário, sobretudo das mulheres, e desencadeiam um processo infeccioso quando entram em desequilíbrio hormonal, imunitário ou nutricional. Como? Muitas vezes devido à utilização de calças apertadas. Qual o problema da roupa justa? É que reduz o acesso do oxigénio às áreas afetadas, promovendo à reprodução destes micro-organismos, que gostam de ambientes pouco oxigenados.
"A metodologia clássica indicava a utilização de um antibiótico que teria como consequência a eliminação de todos os micro-organismos, mas há alguns anos um conjunto de especialistas recuperou registos antigos da Ásia Central que referiam que as mulheres daquelas regiões tratavam-se com a aplicação local de iogurte, um meio ácido e rico em leveduras e lactobacilos, com resultados positivos", explica Miguel Viveiros.
Porquê? "Desta forma inibiam a reprodução dos micro-organismos patogénicos e os médicos começaram a fazer terapias de base biológica, muitas vezes com melhores resultados." Até nos processos de emagrecimento, as bactérias começam a ser vistas positivamente.
Já se sabia que o aumento de peso resultava de alterações genéticas, hormonais, ambientais e comportamentais, mas um artigo da revista "Nature" revelou recentemente que as bactérias presentes no intestino têm aqui um papel a desempenhar. Um desequilíbrio nesta comunidade pode provocar um processo inflamatório que estará na raiz da obesidade porque fragmentos destes micro-organismos escapam do seu habitat habitual, entram na corrente sanguínea e chegam às células da gordura, alterando-lhes o metabolismo. A consequência? Mais células gordas!
Mas nem sempre o relacionamento entre homens e micro-organismos é harmonioso e, nas alturas em que os agentes infecciosos entram em ação, é preciso dominá-los. "O sistema imunológico é extremamente competente na limitação de danos provocados por muitos agentes e uma terapêutica anti-infecciosa só deve ser considerada se houver benefícios no tratamento com antibióticos", explica Mário Morais de Almeida.
O médico recorda que "a maioria das infeções, nomeadamente respiratórias, tão frequentes nesta época do ano, é de origem viral, sem indicação para o uso de antibióticos". Explica ainda que em cerca de 90% das crises de asma graves das crianças e até em 70% dos adultos, "são as infeções virais que desempenham o principal papel no agravamento da doença". E, nestas situações, "um combate anti-infeccioso abrangente fragiliza-nos ao provocar danos em muitos micro-organismos que convivem positivamente connosco".
Alerta ainda para a identificação cada vez mais frequente de estirpes bacterianas mais agressivas e resistentes aos medicamentos que tradicionalmente as combatem, "situação que se verifica logo na idade pediátrica". É a altura para entrarem em ação os imunomoduladores, também eles de origem infecciosa, que amplificam a competência do organismo humano na resposta ao processo infeccioso. Geralmente são ingeridos por via oral, podendo estar, ou não, associados ao uso de antibióticos. São fabricados a partir de extratos bacterianos, estimulam o sistema imunitário das mucosas e protegem os seus consumidores de vários tipos de infeções.
O maior problema, contudo, é quando os micro-organismos infecciosos se tornam resistentes aos antimicrobianos e às defesas naturais do hospedeiro: são os mortais "superbugs". Então, a grande preocupação dos investigadores é perceber se estão a surgir novos vírus para os quais as populações não estão imunizadas.
Em 1918/19, a pandemia de gripe matou cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo, a gripe de Hong Kong no fim da década de 60 matou um milhão, a sida já terá morto 30 milhões.
O próximo Big One? Provavelmente terá origem animal, explicam os especialistas.
E o que acontece se uma bactéria que causa uma simples infeção na garganta se torna resistente a todos os antibióticos disponíveis? "Os médicos terão um grande problema. Não há muito a fazer e o paciente poderá morrer de uma infeção que seria simples", explica o virologista Ricardo Parreira, do IHMT. Há, contudo, uma saída: "A natureza ofereceu-nos uma solução. Tal como as plantas ou os animais, as bactérias são infetadas por vírus, designados bacteriófagos." É o bichinho a comer o bicharoco!
O BICHINHO E O BICHAROCO
VÍRUS
Do latim veneno. São agentes infecciosos extremamente pequenos, considerados parasitas intracelulares obrigatórios, pois dependem das células que habitam para se multiplicar. Representam a maior diversidade biológica do planeta, sendo mais diversos que bactérias, fungos, plantas e animais juntos. Exemplos de doenças humanas provocadas por vírus: hepatite, sarampo, gripe, poliomielite, varíola, sida. Os antibióticos não combatem os vírus e as vacinas são utilizadas como método de prevenção, pois estimulam o sistema imunológico a produzir anticorpos.
BACTÉRIAS
Do grego bastão, são organismos unicelulares que se reproduzem rapidamente e podem ser encontrados isolados ou em colónias. Podem viver na presença ou na ausência do ar, estando entre os organismos mais antigos do planeta. Existem várias espécies de bactérias usadas na preparação de comidas ou bebidas fermentadas, dos queijos, iogurtes, vinhos ou leites fermentados. Atuam como agentes infecciosos, mas muitas ajudam a digestão e impedem a proliferação de micróbios patogénicos. Podem ser combatidas com antibióticos.
1. BOCA, FARINGE E SISTEMA RESPIRATÓRIO
Streptococcus gordonii
Apresentam metabolismo fermentativo, estão amplamente distribuídos na natureza e são difíceis de serem tratados
Haemophilus
São o agente mais comum da meningite bacteriana em crianças, a fonte de infeção é o homem
2. ESTÔMAGO E INTESTINOS
Escherichia coli
Também conhecidas pela abreviatura E.coli, são uma das mais comuns e mais antigas bactérias simbiontes do homem. Causam infeções urinárias. São um indicador da qualidade da água e dos alimentos
Lactobacillus
Têm importante valor comercial para a indústria alimentar, produzem ácido láctico e auxiliam no equilíbrio gastrointestinal. Reduzem a intolerância à lactose. Consideradas bactérias amigáveis
Bifidobacterium
São positivas para a saúde humana porque previnem distúrbios intestinais infecciosos, fazem parte do grupo de bactérias que compõem a flora intestinal e vivem no cólon
Enterobacteriaceae
Muito abundantes e com grandes variedades patogénicas, como as salmonelas
3. PELE
Staphylococcus epidermis
Amplamente presentes na natureza, são responsáveis por infeções hospitalares, mas não produzem toxinas
4. SISTEMA GENITURINÁRIO
Candida albicans
Espécie de fungo, causa infeções orais e vaginais nos humanos, podem ser encontradas em 80% da população sem que implique efeitos prejudiciais à saúde. O excesso causa candidíase
Klebsiella
Aparecem na água, solo, frutas, vegetais, cereais e nas fezes. Provocam pneumonias