quinta-feira, 15 de março de 2012

O VALIOSO TEMPO DOS MADUROS.

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui
para a frente do que já vivi até agora. Tenho muito mais passado do
que futuro.

Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de cerejas. As
primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas,
rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em
reuniões onde desfilam egos inflados. Inquieto-me com invejosos
tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos
e sorte.

Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir
assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar
da idade cronológica, são imaturas.

Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo
de secretário geral do coral. "As pessoas não debatem conteúdos,
apenas os rótulos".

Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa…

Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana, que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com
triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua
mortalidade…

Só há que caminhar perto de coisas e pessoas de verdade. O essencial
faz a vida valer a pena.

E para mim, basta o essencial!

Mário Coelho Pinto de Andrad (1928/1990), poeta, ensaísta e escritor angolano

quarta-feira, 14 de março de 2012

Enquanto se colocarem interesses de indivíduos e grupos de uma só espécie acima do bem comum da Terra e de todos os seres , enquanto não nos colocarmos no lugar do outro antes de qualquer pensamento , palavra ou acção que o afecta , continuaremos a ser velhos répteis , grotescamente sofisticados em termos científico - tecnológicos , mas 500 milhões de anos atrasados e em risco de extinção .

   Num livro recente , "Doze passos para uma vida solidária" , Karen Armstrong mostra que o grande desafio para vivermos hoje em harmonia numa comunidade global é aplicar a Regra de Ouro de toda a ética , comum às religiões da humanidade e imperativo laico : "Não fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem" ; "Fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem" . Isso implica a experiência de se colocar no lugar do outro , a em-patia ou com-paixão , não o ter pena emocional e condescendente , mas o assumido abandono da gravitação em torno de si mesmo para ser capaz de ver e sentir o mundo como o outro o vê e sente . Uma experiência de descentramento , de desobstrução do espaço ocupado pelo ego , individual ou colectivo , para sentir em si o que o outro sente , dor ou alegria .
   A razão profunda da actual crise é que a rápida evolução científica e tecnológica não foi acompanhada de uma igual evolução ética e espiritual , fazendo com que indivíduos , grupos ou nações sujeitos aos mais primitivos instintos e emoções detenham sofisticados mecanismos de poder , exploração e destruição militar e económica . Temos uma civilização global , em termos económico-tecnológicos , mas não uma consciência ética global .
   Outra potencialidade reside todavia em nós , com o neocórtex e mais : o espírito ou natureza profunda da mente , cujas naturais qualidades são a consciência global e a empatia amorosa e compassiva . São elas que  nos permitem colocar-nos no lugar do outro , não só dos nossos familiares , amigos ou membros do mesmo grupo , clube , empresa , partido , nação , religião ou espécie . São eles que ao invés dos velhos répteis , nos permitem alargar progressivamente o círculo da nossa consideração e afecto , ao ponto de respeitar e amar os próximos como a nós mesmos , sem excluir inimigos nem membros de outras espécies . São elas que nos permitem a empatia com todos os que sofrem e são felizes e não sermos indiferentes aos pobres , doentes e sem abrigo , aos que padecem fome e sede , aos explorados , oprimidos e violentados , homens ou animais . É essa natureza profunda , à medida que se libertar de parcialidades , que nos permite sentir igualmente a dor do desempregado , do recluso na prisão ou do cão no canil  , do porco , frango ou vaca no matadouro e do touro na arena . Simplesmente porque é dor , independentemente de quem a sente . E é a nossa natureza profunda que nos permite sentir ainda compaixão por todos os que são responsáveis pelas dores dos outros , agindo sem ódio contra essas acções .
   Do cultivo de uma consciência ética global , abrangente de todas as formas de vida , depende sairmos desta crise para uma nova civilização . Só a cultura da visão global , do amor e da compaixão pode salvar o mundo . Desenvolvê-la em todas as esferas da vida pública e privada , a começar pela educação , é o maior imperativo e investimento de cada um de nós e de todo o governo que venha a ser digno desse nome . Enquanto se colocar a economia e as finanças acima da sabedoria , da compaixão e de leis que as expressem  , produzir riqueza será sempre para benefício de poucos e prejuízo da maioria . Enquanto se colocarem interesses de indivíduos e grupos de uma só espécie acima do bem comum da Terra e de todos os seres  , enquanto não nos colocarmos no lugar do outro antes de cada pensamento , palavra e acção que o afecta , continuaremos a ser velhos répteis , grotescamente sofisticados em termos científico-tecnológicos , mas 500 milhões de anos atrasados e em risco de extinção .

   Este texto foi publicado na revista CAIS do mês de Fevereiro e é da autoria de Paulo Borges , docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa , e director da revista Cultura entre Culturas .

sexta-feira, 2 de março de 2012

Transcrição do artigo do médico psiquiatra Pedro Afonso, publicado no Público


"Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas

esquecendo que a sociedade é feita de pessoas.


Recentemente, ficámos a saber, através do primeiro estudo

epidemiológico nacional de Saúde Mental, que Portugal é o país da

Europa com a maior prevalência de doenças mentais na população. No

último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença

psiquiátrica (23%) e quase metade (43%) já teve uma destas

perturbações durante a vida.


Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque assisto com

impotência a uma sociedade perturbada e doente em que violência,

urdida nos jogos e na televisão, faz parte da ração diária das

crianças e adolescentes. Neste redil de insanidade, vejo jovens

infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos

dos seus insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos

os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária. Na

escola, estes jovens adquiriram um estatuto de semideus, pois todos

terão de fazer um esforço sobrenatural para lhes imprimirem a vontade

de adquirir conhecimentos, ainda que estes não o desejem. É natural

que assim seja, dado que a actual sociedade os inebria de direitos,

criando-lhes a ilusão absurda de que podem ser mestres de si próprios.


Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque, nos últimos quinze

anos, o divórcio quintuplicou, alcançando 60 divórcios por cada 100

casamentos (dados de 2008). As crises conjugais são também um reflexo

das crises sociais. Se não houver vínculos estáveis entre seres

humanos não existe uma sociedade forte, capaz de criar empresas

sólidas e fomentar a prosperidade. Enquanto o legislador se entretém

maquinalmente a produzir leis que entronizam o divórcio sem culpa,

deparo-me com mulheres compungidas, reféns do estado de alma dos

ex-cônjuges para lhes garantirem o pagamento da miserável pensão de

alimentos.


Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque se torna cada vez

mais difícil, para quem tem filhos, conciliar o trabalho e a família.

Nas empresas, os directores insanos consideram que a presença

prolongada no trabalho é sinónimo de maior compromisso e

produtividade. Portanto é fácil perceber que, para quem perde cerca de

três horas nas deslocações diárias entre o trabalho, a escola e a

casa, seja difícil ter tempo para os filhos. Recordo o rosto de uma

mãe marejado de lágrimas e com o coração dilacerado por andar tão

cansada que quase se tornou impossível brincar com o seu filho de três

anos.


Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque a taxa de

desemprego em Portugal afecta mais de meio milhão de cidadãos. Tenho

presenciado muitos casos de homens e mulheres que, humilhados pela

falta de trabalho, se sentem rendidos e impotentes perante a maldição

da pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo trabalho manual,

tornadas inúteis, segurando um papel encardido da Segurança Social.


Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque é difícil aceitar

que alguém sobreviva dignamente com pouco mais de 600 euros por mês,

enquanto outros, sem mérito e trabalho, se dedicam impunemente à

actividade da pilhagem do erário público.* Fito com assombro e

complacência os olhos de revolta daqueles que estão cansados de

escutar repetidamente que é necessário fazer mais sacrifícios quando

já há muito foram dizimados pela praga da miséria.


Finalmente, interessa-me a saúde mental de alguns portugueses com

responsabilidades governativas porque se dedicam obsessivamente aos

números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de

pessoas. Entretanto, com a sua displicência e inépcia, construíram um

mecanismo oleado que vai inexoravelmente triturando as mentes sãs de

um povo, criando condições sociais que favorecem uma decadência

neuronal colectiva, multiplicando, deste modo, as doenças mentais.


E hesito em prescrever antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o

estômago vazio e a cabeça cheia de promessas de uma justiça que se

há-de concretizar; e luto contra o demónio do desespero, mas sinto uma

inquietação culposa diante destes rostos que me visitam diariamente".


Pedro Afonso

Médico psiquiatra