quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Por não querer nem governo nem Estado. Para uma narrativa política dos 35 anos dos Xutos


No dia da morte do Zé Pedro, republicamos este artigo de Fernando Ramalho. A mundividência dos Xutos seguiu sempre muito a par do viver quotidiano dos seus membros que, por sua vez e como será natural que suceda, é inseparável dos altos e dos baixos, dos sucessos e fracassos, de um percurso de 35 anos, que no caso dos Xutos é tudo menos linear.
9 de Março, 2014 - 00:18h





Entre 25 e 29 de Julho de 1983 tinha lugar, no Carvalhal, em Tróia, o festival «Dêem uma Oportunidade à Paz», uma iniciativa de grande dimensão organizada por um movimento unitário que, na altura, intervinha em torno dos problemas da paz, com particular destaque para a luta contra as armas nucleares. Tinha fomentado, por exemplo, cerca de um mês antes, um forte movimento contra a instalação de material nuclear norte-americano na Base Aérea de Beja. Do cartaz do festival faziam parte uns então relativamente desconhecidos Xutos & Pontapés. Quando entraram no palco, depararam-se com um cenário desolador. Explica Kalú: «O público estava muito longe do palco. (…) em vez de porem as pessoas ali à frente, rodearam a zona da mesa de mistura com grade onde só deixaram entrar os jornalistas, que entretanto estavam todos na copofonia atrás do palco, onde era o bar. Aquilo parecia mesmo o deserto, com as luzes via-se um cabo enorme e preto em cima da areia, a mesa, e o público lá ao fundo a dormir…»i Face àquilo, Zé Pedro, assim que entra no palco, pega no microfone e diz: «A grande diferença que existe entre nós e vocês é que gente já não acredita na Paz!»ii Aquela declaração não só teve o condão de atrair para a frente do palco, perante a incapacidade da organização do festival para «resolver o problema», a enorme massa humana que se amontoava, a muitos metros de distância, em sacos-cama, como despertou a curiosidade dos jornalistas. Os Xutos conseguiram mesmo, pela primeira vez, ser capa do semanário Se7e, na semana seguinte, com uma entrevista a Belino Costa. Aí, pode ler-se: «"Fiquei espantado quando o Zé Pedro fez tais afirmações", conta o Tim. "Ele exprimiu, afinal, o pensamento do grupo. De facto, já não acreditamos em manifestações pacifistas. Para o poder é bem melhor a existência de um Festival da Paz do que uma greve de estivadores. Por outro lado, a questão da Paz não se resume ao nuclear. Quando, por exemplo, em França se despedem 9 mil trabalhadores da Renault isso é uma forma de violência e guerra. Em Almada por certo que vai haver problemas quando começarem a despedir gente na Lisnave. Não será isso tão agitador quanto a passagem de armas nucleares em Portugal? Estamos muito mais preocupados com a violência do dia-a-dia do que com as armas nucleares!"»iii

Vale a pena determo-nos um pouco sobre o Portugal de 1983. Cerca de um mês e meio antes do referido festival, tomara posse o IX Governo Constitucional, o chamado governo do Bloco Central, composto por uma aliança entre o PS de Mário Soares e o PSD de Carlos da Mota Pinto. A situação económica e social era caótica e, em meados de Agosto, o Governo assinou uma «carta de intenções» com o FMI, um acordo para o que seria a segunda intervenção em Portugal daquela instituição desde o 25 de Abril. O impacto conjugado da débil situação económica e financeira e das medidas ultra-austeritárias do FMI foi brutal: inflação à volta dos 30 por cento, congelamento de salários e do investimento público, falências e despedimentos em catadupa, dezenas de milhares de trabalhadores com salários em atraso, quebra abrupta do consumo interno, etc. Ficaram na memória algumas declarações do primeiro-ministro Mário Soares, como «Portugal habituara-se a viver, demasiado tempo, acima dos seus meios e recursos»iv ou a célebre «Os problemas económicos em Portugal são fáceis de explicar e a única coisa a fazer é apertar o cinto»v.

Num tal ambiente, era o conflito, e não a paz, que estava na ordem do dia. A «violência do dia-a-dia» de que falava Tim era o substrato da ressaca pós-revolucionária, com todo o seu cortejo de desilusões e frustrações. No lugar do sonho da «cidade sem muros nem ameias» instalara-se a sensação da ausência de futuro. E os Xutos, ainda longe da condição de «instituição» que atingiriam daí a uns anos, eram actores nesse cenário. É desse período a canção «Futuro» – embora tenha sido editada apenas em 1990, no álbum Gritos Mudos – que, traduzindo o ar dos tempos, dizia precisamente: «Futuro que era brilhante / Embaciou-se a pouco e pouco / Os passos ficaram lentos / Dando certezas de louco / O desencanto é tão seco / Como a luz que me rodeia / E as coisas que não fiz / Envolvem-me como a teia.»

Em 1983, reduzidos a trio, depois do fracasso comercial de um álbum e dois singlesvi, os Xutos carregavam o fardo do desencanto. E o desencanto resultava não apenas da circunstância de terem sido apanhados no refluxo do chamado «boom do rock português»vii, mas sobretudo porque esse refluxo era uma das componentes de um viver quotidiano cada vez mais castrador e claustrofóbico. A vida era dura, e a música dos Xutos reflectia essa dureza. Mais: os Xutos, eles próprios, eram personagens das suas canções. Em 1983, Tim saltava de emprego em emprego, enquanto tentava terminar a licenciatura em Agronomia, Zé Pedro era escriturário e Kalú trabalhava na pequena empresa corticeira da família. Este último, mais de 20 anos depois, quando perguntado sobre como surgira a canção «Homem do Leme», respondia: «Foi uma das primeiras músicas que o Tim fez para a banda. Não sei bem porque é que ele a escreveu, mas revela os problemas sociais daquela altura. Éramos da classe operária e sentíamos as dificuldades naturais dos trabalhadores.»viiiManter, naquele contexto, uma banda de rock com pretensões de perenidade, recusando concessões estéticas e políticas, pareceria naturalmente uma tarefa impossível. Mas era justamente a determinação de seguir por esse caminho, apesar do desencanto, que constituía a estratégia de intervenção no conflito. Esta história, porém, começa uns anos antes, ainda na segunda metade da década de 1970.

Dantes, o tempo corria lento

Costuma-se localizar o início da história dos Xutos em 13 de Janeiro de 1979, no célebre concerto nos Alunos de Apolo, mas vale a pena recuar uns meses, até ao momento em que Zé Pedro, no meio de um InterRail, assiste a um festival punk em Mont-de-Marsan, em França, onde viu, entre outros, os The Clash: «Cheguei lá uns dias antes, Mont-de-Marsan era quase uma aldeia e as pessoas trancaram-se em casa com medo. Quando os punks começaram a chegar foi a grande confusão, entravam nas poucas lojas que tinham ficado abertas e aviavam-se sem pagar. (…) No terceiro dia do festival foi o Lou Reed. Entrei à borla, foi uma sorte porque os franceses tinham uma segurança com um ar super-organizado que conseguia manter as pessoas cá fora a cinquenta metros das portas, tinham isolado os acessos às portas com grades… e, mal o espectáculo começou, fecharam as portas da praça de touros. Aí começou o assalto – cocktails Molotov a voar, bidões de gasolina a arder (…) Quando voltei rapei o cabelo todo, meti um alfinete na boca (…)»ix

Se em Inglaterra o chamado movimento punk explodia como reacção ao establishment cultural e político, e na verdade à decadência de toda uma civilização que via implodir as expectativas de um futuro radioso e de progresso em que assentara o capitalismo dos «30 anos gloriosos» do pós-guerra, as particularidades da situação portuguesa acrescentavam alguma complexidade ao problema. Se havia coincidência na sensação de ausência de futuro, em Portugal essa sensação decorria do impacto no quotidiano do percurso de uma revolução que, apenas quatro anos antes, se construíra justamente a partir de uma promessa de futuro. Se é verdade que só com alguma generosidade se pode falar de algo como um movimento punk em Portugal – na verdade, até faria mais sentido dizer Lisboa… – no final dos anos 1970, seria muito apressado concluir que a pequena movida de umas poucas dezenas de pessoas que formavam bandas, produziam fanzines, trocavam discos, etc., não tinha a capacidade de traduzir um sentimento que se generalizava muito para lá dos seus intervenientes. Era um profundo tédio a marca de uma vida quotidiana cuja expectativa mais optimista que era capaz de gerar era a de uma vidinha previsível e vazia, da escola para o trabalho, do trabalho para casa. «Submissão», uma das primeiras canções dos Xutos – ainda que só tenha sido editada mais tarde, no lado B do single «Se Me Amas», de 1989 –, cantada por Zé Pedro, dizia: «Eu deixei a escola e fui trabalhar / Mas é pior do que andar a estudar / São oito horas por dia, é muito a aturar / É tanto tempo que nem dá para pensar».

A tensão entre o risco de uma vida miserável e a possibilidade do remedeio do trabalhinho honesto expressava uma oposição que era recusada à partida, e o que se questionava era precisamente um modo de viver que fazia depender uma eventual felicidade futura do sacrifício castrador do presente. E, também por isso, perdia sentido sequer tentar imaginar o futuro; do que se tratava era, pelo contrário, da negação prática, quotidiana, do tédio do presente, da recusa das meias tintas. Como se cantava em «Quero Mais», lado B do single «Sémen», de 1981, «Eu sei lutar até ao fim / É tudo ou nada». Na sua primeira aparição na TV, em Agosto de 1981, no programa da RTP Haja Música, à pergunta «Além da música, em que é que acreditam: têm alguma ideologia, alguma religião?», Zé Pedro respondia: «Eu, quanto a mim, reajo em cima dos acontecimentos, não é preciso haver nada estabelecido. Um gajo apresentar-se como ele é. Não há padrões»; a que acrescentava Tim: «Não há linha de orientação.»x

Numa curta-metragem de 1987, Um dia destes…xi – em que os próprios Xutos são protagonistas, com Anamar, Manuel Mozos, entre outros –, Edgar Pêra traça um retrato impressivo de um dia banal na vida da cidade nos tempos da «normalização democrática». Por entre uma sucessão rocambolesca de mal-entendidos acerca do desaparecimento de 250 contos que o paquete de uma loja deveria depositar no banco, um grupo de pessoas prepara, para o fim do dia, uma festa com um concerto de uma banda de rock – os Xutos – numa oficina automóvel, aproveitando a circunstância da previsível ausência do patrão. As várias personagens vão-se cruzando, de uma forma ou de outra, ao longo do dia e mobilizando para a noite, acabando todos por se encontrar na festa. Na sequência de uma queixa pelo desaparecimento dos 250 contos, o dono da oficina acaba por aparecer com a polícia, e termina a festa. No subtexto da trama está a claustrofobia do quotidiano, do trabalho para ganhar a vida, e a estratégia de fuga, a supressão do tempo mecânico do dia-a-dia pela quimera voraz do gozo e da festa, com tudo o que isso implicava de conflito e cumplicidades, de polarização e de imprevisibilidade. Como afirma Zé Pedro, numa peça do jornal Blitz de 1985, «"Renunciar ao estado de gozo é o pior que pode acontecer" – diz. – "É a tal cena da ganza e da ressaca: há os que optam por não se ganzarem para não terem ressacas e há os outros"»xii. «Dantes, o tempo corria lento, meu / Dantes, matava-se o tempo teu / Mas tudo isso passou / Foi o tempo que me matou», cantava-se em «Dantes», segunda faixa do álbum 1978-1982.

A história do segundo concerto da vida dos Xutos, que assinalava os 11 anos do Maio de 68xiii, em 5 de Maio de 1979, com os Raios e Coriscos, os Minas & Armadilhas e os Aqui d'El Rock – uma banda punk de marginais do Bairro do Relógio que chegou a editar dois singles, um deles, de 1978, com o significativo título «Há que Violentar o Sistema» –, no Liceu D. Pedro V, fornece uma imagem intensa da produção desse tempo suspenso, sem futuro, o tempo da cumplicidade, do gozo e da festa. Leia-se, por exemplo, o que escrevia Pedro Ferreira, na edição de Maio de 1979 da revista Música & Som, a propósito deste concerto: «Há quem não tome o fenómeno Punk a sério. O recente concerto no Liceu D. Pedro V, em Lisboa, pôs uma vez mais em causa essa atitude. O Punk tem uma vitalidade própria, como prova o aparecimento de novos (poucos, é pena) grupos do género, como o Raios e Coriscos, o Minas & Armadilhas SARL e o Xutos e Pontapés, que actuaram conjuntamente com o Aqui d’El Rock no Liceu referido. (…) Voltando ao concerto, foi significativo um dos verdadeiros rebeldes ter pedido o microfone para dar um grito; no fundo, o denominador comum daquela malta era o grito de "estamos vivos". Mas a comunicação entre o grupo no estrado e a audiência era unívoca, porque o som nebuloso e esmagador apagava a contestação, o pluralismo, ao mesmo tempo que criava a atmosfera intemporal do milagre: o cigarro que se pede, a cerveja que se bebe, os teus olhos nos meus olhos… milagre afectivo, comunicação outra entre indivíduos flutuando nas nuvens de ruído amigo, milagre musicalmente passivo, milagre na superfície… o Punk à superfície do milagre!»xiv Ainda a propósito desse concerto, relata Zé Pedro: «Estavam lá os punks da Amadora, gostaram tanto que não nos largaram porque queriam que fôssemos partir montras com eles para a Av. de Roma.»xv

Cercados na cidade

Há duas referências bastante recorrentes nas canções dos Xutos, sobretudo até ao terceiro quarto dos anos 1980: a cidade e o rio. Não é difícil imaginar que é do cenário concreto das suas vivências que se fala, da Zona Oriental de Lisboa, onde crescera e vivia Zé Pedro, a Almada, onde vivia Tim. Mas a verdade, porém, é que a cidade e o rio que surgem nas canções dos Xutos não são nunca nomeadosxvi. Se o rio é aqui visto como uma espécie de barreira que se interpõe entre duas margens sem esperança – por exemplo, em «Longa se Torna a Espera» (1984), «E quando eu apanhar finalmente / O barco para a outra margem / Outra que finde a viagem / Onde se espere por mim / Terei, terei mais uma vez a força / Para enfrentar tudo de novo / Como a galinha e o ovo / Num repetir de desgraças», ou em «Desemprego» (1987), «Sentado à beira do mar / Ouvindo as ondas rolar / E uma gaivota no ar / Flecte as asas ao virar / Dá-me um sinal p'ra voltar» –, já a cidade é a abstracção que designa o palco do conflito quotidiano – por exemplo, em «Cerco» (1985), «Quando o céu escurecer / E quando o chão reflectir / O colorido da cidade / Os ratos saem da esquadra / Defendendo a sociedade / E andam para a frente / E andam para trás / E o que magoa também satisfaz / E olham para um lado / E olham para o outro / E vêem-me a mim / Estou cercado / Na cidade», ou em «Esta Cidade» (1987), «A polícia já tem o meu nome / Minha foto está no ficheiro / Porque eu não me rendo / Porque eu não me vendo / Nem por ideais / Nem por dinheiro / E como eu sou e quero ser sempre assim / Um rio que corre sem princípio nem fim / O poder podre dos homens normais / Está a tentar dar cabo de mim».

A cidade abstracta das canções dos Xutos é então o cenário da repressão e do confronto com o poder, e os rostos desse poder são, em vários casos, como nos dois exemplos referidos, explicitamente o Estado e a polícia. Essa identificação clara do «outro lado da luta»xviiencontrava eco no posicionamento da banda face aos aspectos marcantes da situação política da época. Veja-se, por exemplo, a declaração de Zé Pedro, na abertura de um concerto no Rock Rendez-Vous, a 6 de Julho de 1984: «"Esquadrão da Morte", e nós lembramo-nos das FP-25 quando tocamos.»xviii E seguia a canção: «Por não querer aquilo que me é dado / Por não querer nem governo nem Estado / Por não ter nada e por tudo querer / Esquadrão da morte faz-me correr.» Note-se que, no mês anterior, tinha ocorrido aquela que ficou conhecida como a «Operação Orion», uma operação policial de grandes dimensões que resultou na detenção de cerca de 40 pessoas alegadamente associadas às FP-25.

A vida que se joga sem nenhuma razão

Para todos os efeitos, a mundividência dos Xutos seguiu sempre muito a par do viver quotidiano dos seus membros que, por sua vez e como será natural que suceda, é inseparável dos altos e dos baixos, dos sucessos e fracassos, de um percurso de 35 anos, que no caso dos Xutos é tudo menos linear. Quando, no início de 1987, editam o álbum Circo de Feras, o primeiro para uma editora multinacional e que abriria uma fase de enorme popularidade que duraria, grosso modo, até 1989/90, os tempos da banda de culto, de certa forma marginal, de combate, começavam a ficar para trás e inaugurava-se a era da banda profissional, reconhecida, tomada como uma espécie de porta-voz de uma geração tida como capaz de, com determinação e perseverança, enfrentar as dificuldades e ser bem-sucedida. Ainda que diferente do tom mais pop e optimista do álbum seguinte, 88, Circo de Feras é uma espécie de álbum de transição em que coexistem canções como «Esta Cidade» (já referida acima) e outras marcadas pela afirmação da esperança, como «Contentores» («É uma escolha que se faz / O passado foi lá atrás / E nasce de novo o dia / Nesta nave de Noé / Um pouco de fé») ou «Não Sou o Único» («E quando as nuvens partirem / O céu azul ficará / E quando as trevas se abrirem / Vais ver, o sol brilhará»). E, efectivamente, o sol brilhou. Ao longo de 1987, 1988 e grande parte de 1989, os Xutos percorrem o país com centenas de espectáculos, das aldeias recônditas do Interior aos pavilhões esgotados das grandes cidades. O 7.º Single, que inclui o mega-êxito «Minha Casinha», ultrapassa os 50 mil exemplares vendidos, tornando-se disco de platina, tal como sucede com os álbuns 88 e Ao Vivo. Os Xutos apanham finalmente o comboio da fama – uma geração inteira, rendida aos seus heróis, a cantar a «Casinha» e a «Maria».

E no entanto, quando nada o faria prever, o «repetir de desgraças» regressa. As vendas de discos desaparecem, os grandes concertos desaparecem, o público desaparece. Entre 1990 e 1995, os Xutos voltam a atravessar o calvário do desencanto. O álbum Gritos Mudos, editado em 1990, resulta num enorme flop comercial. O público já não aderia como antes, e os Xutos voltam às salas pequenas, com audiências que raramente ultrapassam as poucas centenas de pessoas. Tal como Circo de Feras, uns anos antes, Gritos Mudos é também um álbum de transição, mas desta vez ao contrário: enquanto o primeiro antecipava o sucesso, este parecia antecipar o abismo. Além de recuperar canções antigas nunca antes editadas como «Futuro» (já referida acima) ou «Gritos Mudos» («Gritos mudos chamando a atenção / Para a vida que se joga sem nenhuma razão»), o álbum incluía canções como «Gente de Merda» («Quero sair, mas não sei por onde / Não quero ficar, mas vou ficando / Vou arrastando toda esta angústia / Já não tenho forças») ou «Melga», uma crítica às políticas de Fernando Collor de Mello, presidente à época do Brasil, onde o álbum foi gravado («Já farto de ouvir promessas / Pensas que ainda vou nas conversas / De alguém que p'ra mim é uma melga»).

Numa entrevista ao Blitz, em Julho de 1990, as palavras de Tim transpiram um certo ambiente de amargura que a banda vivia, na decorrência quer do problema da queda das vendas e da popularidade quer das tensões internas que isso provocava: «(…) porque depois do trabalho que tivemos com a preparação do disco (…), agora que o disco está publicado, está tudo a bater ao lado… (…) Eu acho que o que faz o culto de uma banda é o trabalho dela. Quando isso é massificado, como no nosso caso, transforma-se em objecto de venda. Em certa fase foi isso que aconteceu. (…) Estou perfeitamente à vontade, até por não ter sido eu a criar esse culto, mas o público e a Imprensa. Por outro lado, no nosso caso, quero acreditar estarmos numa situação de transição. (…) os princípios nunca se devem expor, nunca se devem cristalizar. O que deve ser encarado é que há mudanças, ou para melhor ou para pior. Essas mudanças têm sempre contrapartidas e uma das contrapartidas que se tem é perder-se o culto ou uma certa franja de público.»xix

No Verão de 1990 estreia, no Clube Estefânia, a peça de 1978 Inimigosxx, do inglês Nigel Williams, encenada por José Wallerstein, com banda sonora dos Xutos, com a canção «Tu Aí». Numa escola de uma zona degradada dos subúrbios de Londres, meia dúzia de adolescentes são deixados entregues a si próprios numa sala de aula. Enquanto esperam a chegada do professor, inventam eles próprios estratégias de ocupação do tempo, acabando por traçar aquilo que, para uma classe média bem-sucedida, seria o retrato da forma como as classes desfavorecidas se viam a elas próprias. Explica o encenador: «Inimigos fala de uma sociedade democrática institucionalizada, com classe média desenvolvida, com operariado já instalado, é uma peça do "pré-Tatcherismo", não é? Aliás, eu acho que há um paralelismo entre essa situação e a situação política "cavaquista" que nós vivemos presentemente. Inimigos fala da massificação da INSTITUIÇÃO e dos problemas que se colocam às pessoas que vivem – e são a grande maioria – nas franjas das grandes cidades.»xxi De novo o tema da cidade, agora já numa situação diferente, perante novos problemas, que, no caso dos Xutos tinha de novo uma tradução na angústia de um futuro incerto: «Tu aí! / Espero alguém chegar / Queres assim / Alguém p'ra me orientar / Ficas aí? / Tenho que me aguentar / Até ao fim / Será que me vou salvar?»

Com os dois álbuns seguintes, Dizer Não de Vez e Direito ao Deserto – gravados em simultâneo mas editados, respectivamente, em 1992 e 1993 –, parece assistir-se a uma espécie de regresso dos Xutos às origens, a uma postura de combate e contestação, de amplificação dos problemas sociais e das lutas necessárias, mas igualmente de afirmação da determinação de, enquanto banda, não ceder à lógica do sucesso e às suas vicissitudes. Numa entrevista à revista Ritual, no início de 1993, afirmam: «É dizer NÃO a uma série de atitudes conformistas e passivas que nos têm estado a habituar a ter, como pessoas. Cada vez mais, as pessoas são iguais umas às outras, os problemas de uns são semelhantes aos dos outros, e anda-se a tentar oferecer às pessoas um ideal de vida que é casa-trabalho-trabalho-casa, e ainda por cima, compras um carro para ficares mais empenhado, teres que trabalhar mais… (…) Ainda nos incomoda essa posição de objectos de consumo. (…) Em certa medida, é um regresso às origens (…) Neste disco fizemos o que nos estava a apetecer fazer, o que nos deu na cabeça. (…) Conseguimos abstrair-nos da importância daquilo que estávamos a fazer e da importância que as pessoas lhe poderiam dar. E este tipo de abstracção só o conseguimos fazer até ao Cerco. A partir do Circo de Feras, todos queriam saber o que os Xutos & Pontapés iam fazer e isso começou a pesar de tal maneira que nos demos muito mal com essa história. (…) já não jogavas pelo prazer… Era só pela receita!»xxii

Os problemas sociais, mas também um certo sentido de luta e solidariedade, regressam em força às canções dos Xutos, como em «Dia de S. Receber» («Este dia a dia é duro / É duro de se levar / É de casa p'ró trabalho / E do trabalho p'ró lar // Já não chega o que nos tiram / À hora de pagar / É difícil comer solas estufadas ao jantar / De histórias mal contadas / Anda meio mundo a viver / Enquanto o outro meio / Fica à espera de receber»), «Velha Canção da Cortiça» («O sobreiro desnudado / Enfrenta o sol com a mesma estupidez / Com que um operário cansado / Regressa a casa mais uma vez / E tudo, tudo, se repete / E tudo, tudo, se repete / No ciclo da produção / Acelera-se o consumo / Para dar a sensação / De que esta vida tem rumo / E tudo, tudo, se repete / Seja em nove anos ou num só dia / Só nos velhos se reflecte / O extorquir da mais valia») ou «Direito ao Deserto» («Triste sina / De quem se julga mais fraco / A vossa sina / Ó carneirada mole / Ajudem-se / Ajudem-se / Não tenho medo dos lobos / Nem paciência para o teu pastor / Ovelha negra / Carneiro preto / Eu vou direito ao deserto»).

Evidentemente, os Xutos dos anos 1990 já não são os Xutos da década anterior. Não só toda a envolvente era diferente como o percurso sinuoso da banda até aí determinara problemas de outra natureza. Como é óbvio, estar atento aos problemas sociais, e reflectir essa observação nas canções que se escreve, não é a mesma coisa que ser actor do conflito quotidiano que esses problemas traduzem. Numa entrevista ao Independente no final de 1993, Zé Pedro explica o que mudou: «O que é que mudou na vida real? Agora somos profissionais da música e antigamente não éramos. De facto, agora as preocupações são outras. Sei lá, já não precisamos de andar de táxi.» E Tim acrescenta: «Nunca soubemos nem sabemos o que nos pode acontecer. As incertezas existem sempre. Dantes era o dinheiro para o táxi, agora é saber se temos dinheiro para fazer uma série de concertos em França. Coisas desse género.»xxiii

O que foi não volta a ser, mesmo que muito se queira

O final de 1995 marca o início de um novo percurso de sucesso que se mantém até hoje, com a edição do álbum Ao Vivo na Antena 3, uma revisitação de canções do já então vasto repertório da banda arranjadas em formato acústico. Uma momentânea inflexão estética revelou-se de grande eficácia do ponto de vista comercial. Mas esta nova fase de sucesso é fundamentalmente diferente da anterior, da do final dos anos 1980. Se nessa altura os Xutos eram vistos como uma espécie de porta-vozes de uma geração, dos seus anseios e expectativas, o que agora se iniciava era a elevação dos Xutos à condição de «instituição nacional». A partir daí, não era já apenas uma geração que os via como heróis, mas toda uma nação que os reconhecia como seus símbolos. O processo de «nacionalização» dos Xutos tem um ponto alto na comemoração dos 20 anos da banda, no início de 1999, com a edição de uma fotobiografia e da colectânea XX Anos XX Bandas, um álbum de tributo de 20 bandas e artistas nacionais, mas sobretudo com um concerto num praticamente esgotado Pavilhão Atlântico, a 20 de Março. Dois dias depois, no jornal Público, descreve-se o ambiente, numa peça significativamente intitulada «Uma festa portuguesa»: «Entre o público que quase encheu anteontem à noite o Pavilhão Atlântico, viu-se muita gente com a bandeira portuguesa pelos ombros. Afinal, era de uma celebração nacional que se tratava. Não eram apenas os 20 anos de uma banda, mas sim os 20 anos da mais portuguesa das bandas rock. Foi por isso apropriado que o concerto de aniversário dos Xutos & Pontapés tivesse acontecido no Parque das Nações, em Lisboa – tal como a Expo-98, os Xutos transformaram-se numa glória nacional. Não é que eles sejam uma banda nacionalista, ou que o concerto de sábado fosse concebido como uma exaltação patriótica. Mas, ao fim de 20 anos, os Xutos tornaram-se numa fonte de orgulho pátrio, alcançando um estatuto único no rock português. Há uma "portugalidade" intrínseca à banda de "Gritos Mudos" (…) Com toda a gente a seu lado e as luzes já acesas, os Xutos terminaram em apoteose com "A Minha Casinha", a mais lusitana das canções, cantada em coro pelo público. Depois do final, no caminho para casa, ainda se ouve no metropolitano um grupo de jovens a cantar o hino nacional e a gritar "Portugal, Portugal". Uma festa portuguesa, portanto.»xxiv

Cinco anos depois, a 10 de Junho de 2004, os Xutos seriam agraciados pelo Presidente da República Jorge Sampaio, em conjunto, entre outros, com a especialista em culinária Maria de Lurdes Modesto, com o grau de comendadores da Ordem de Mérito, que distingue «actos ou serviços meritórios que revelem desinteresse ou abnegação em favor da colectividade, no exercício de quaisquer funções, públicas ou privadas».

A partir daí, pode dizer-se, tudo o resto é história, e é uma história bem conhecida. O que, porventura, estará ainda por reflectir é o que terá sucedido para que uma banda cuja marca era o dissenso e a ruptura se tenha tornado símbolo de um consenso que, naturalmente, esbate as fronteiras que dividem os conflitos do quotidiano, que torna indistintos os «lados da luta». Não é fácil encontrar alguma indicação nesse sentido nas canções dos Xutos até ao final dos anos 1990 (nem mesmo depois disso…). Talvez uma análise mais aprofundada das condições políticas, sociais e culturais do Portugal da segunda metade dos anos 1990 possa fornecer algumas pistas, mas essa reflexão terá de ficar para uma próxima oportunidade.

Será então que podemos afirmar que os Xutos perderam a sua, digamos assim, veia contestatária e interventiva? Não necessariamente. Aliás, podemos encontrar esse olhar crítico em várias canções dos últimos anos. Veja-se, por exemplo, a canção «Ligações Directas», do último álbum da banda, Puro, sobre os recentes cortes de energia do Bairro do Lagarteiro, no Porto: «Quanto mais têm mais querem de mim / Como o gasóleo tudo pode subir / Só o teu salário continua a descer / Tu não crês em ligações directas / Olha aqui estas feridas abertas / Por onde escorreu o nosso dinheiro / E se derreteu um futuro inteiro / Tu, morrer de fome e de frio primeiro / Aqui no bairro do Lagarteiro.» Ou «Sem Eira nem Beira», do álbum homónimo de 2009: «Senhor engenheiro / Dê-me um pouco de atenção / Há dez anos que estou preso / Há trinta que sou ladrão / Não tenho eira nem beira / Mas ainda consigo ver / Quem anda na roubalheira / E quem me anda a foder.» É, porém, significativa a polémica que se gerou a propósito desta última canção quando, por razões que são óbvias pela referência ao «senhor engenheiro», foi vista como uma espécie de manifesto contra o primeiro-ministro de então, José Sócrates, intenção de imediato recusada pela banda. Pode ler-se numa peça do jornal Público: «Interpretar esta faixa, cantada pelo baterista Kalú, como um hino contra as políticas do Governo socialista é "deturpar" a intenção do grupo. "Não há aqui alvos a abater", diz [Zé Pedro], em resposta ao facto de o refrão começar com a frase Senhor engenheiro, dê-me um pouco de atenção. "Não queremos fazer um ataque político a ninguém. A letra exprime mais um grito de revolta. E é um alerta para o estado da Justiça e para uma classe política em geral que, volta e meia, toma atitudes que deixam os cidadãos desamparados", justifica. (…) Zé Pedro, que, diz, até "simpatiza" com o primeiro-ministro José Sócrates, aponta ainda que quando Tim, o vocalista, escreveu o texto para a música de Kalú, tiveram de optar entre "senhor engenheiro" e "senhor doutor": "Optámos por engenheiro por causa do actual primeiro-ministro, mas nunca quisemos fazer um ataque político directo."»xxv

Os Xutos que agora comemoram 35 anos de carreira são, evidentemente, diferentes dos Xutos que se lembravam das FP-25 quando tocavam «Esquadrão da Morte» ou que sentiam «as dificuldades naturais dos trabalhadores», tal como a realidade em que produzem a sua música mudou profundamente. Goste-se mais ou menos dos Xutos tornados símbolos nacionais, consensuais mesmo quando as suas canções são mais críticas, seria patético tanto qualquer tique saudosista quanto qualquer juízo moralista. Isso só poderia resultar de uma visão que atribui à arte e aos artistas um papel redentor que manifestamente não têm. Os Xutos de 1984 não salvaram a revolução e os Xutos de 2014 não salvarão a nação. O que porventura fará sentido, aproveitando a data redonda, é reflectir sobre a forma como a arte e os artistas se produzem em relação com a realidade quotidiana concreta, bem como, em sentido inverso, intervêm na produção dessa mesma realidade. E para essa reflexão, a história dos Xutos – toda a história dos Xutos – pode fornecer um excelente contributo.

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