CAPAS DE REVISTAS
OPINIÃO|MEMÓRIA
O ouro e a lata
Jorge Seabra
POR JORGE SEABRATERÇA, 13 DE AGOSTO DE 2019
Não tenho esperança de ver a foto de Manuel Louzã Henriques, o velho leão da Liberdade, a ocupar toda a capa da revista do Expresso, a mesma que dá um contrastante destaque a uma extensa entrevista com José Miguel Júdice.
Manuel Louzã Henriques (1933-2019). Foto de arquivo.Créditos/ youTube
Após épocas de libertação, há, nas sociedades saídas de regimes ditatoriais ou dos sacrifícios das guerras, aquilo que se pode designar por «injustiça histórica» na descrição do passado, numa avaliação emocional que relega para segundo plano a frieza dos interesses e novas relações de poder, que recriam enviesamentos construindo um mundo virado ao contrário.
Vem isso a propósito das figuras que em cada época «oficialmente» se homenageiam ou destacam, e do significado político e cultural que esse facto tantas vezes reflecte, passando, numa mensagem de aparente normalidade, as mais extremas manifestações de intolerância e facciosismo.
Talvez o tema deste texto tenha começado por ser uma expressão da vontade de falar do desaparecimento de mais um pilar da cultura humanista do nosso país, símbolo de ouro dos valores que devem reger o mundo mais justo que todos dizem querer construir: Manuel Louzã Henriques.
A notícia do seu falecimento surgiu em alguns órgãos de comunicação social, repercutindo-se também nas redes sociais sem, no entanto, ter tido a devida relevância alargada e oficial que o próprio – com o «obstinado receio de ser vedetizado ou de construir a própria estátua», na escrita de Manuela Cruzeiro e Teresa Carreiro, coordenadoras-autoras do livro Manuel Louzã Henriques – Algures com meu(s) imão(s) – seguramente não desejaria.
«Manuel Louzã Henriques [foi um] espírito brilhante e animador do associativismo cultural e desportivo estudantil na transição dos anos 50-60 do século passado, preso e torturado pela PIDE ainda jovem, conhecedor dos cárceres do Aljube, de Caxias e de Peniche, médico proibido de integrar os hospitais públicos pela ditadura, candidato da Oposição em 62 e activo participante em muitas outras eleições e iniciativas ligadas ao progresso político e cultural do país»
Infelizmente, o apagamento de figuras de excepção meramente por razões políticas é já um hábito. Nada que não tenha acontecido com outras personalidades marcantes da sociedade portuguesa, que se diz querer culta e democrática, mas onde se diminui ou abafa alguns símbolos maiores da cultura e da resistência à ditadura, como Mário Sacramento, intelectual de primeira água, figura tutelar dos Congressos da Oposição em Aveiro (cujo cinquentenário da morte passou quase despercebido), e se estende até ao nosso único Nobel da Literatura, a quem, em tempos, a coligação PSD-CDS liderada por Rui Rio, negou dar o nome a uma rua da Cidade Invicta.
Explicação? Verdadeiro sectarismo político de quem se diz democrata, explorando velhos preconceitos anticomunistas.
É com isso que a direita dos grandes interesses se alimenta, qualquer que seja o nome mais ou menos civilizado ou social em que se acoberta para lhe roubar o apoio e o voto, manipulando a consciência da maioria da população que trabalha.
Sem fazer um juízo de valor (muito menos elogioso) sobre a qualidade dos programas, gostaria de ter visto Manuel Louzã Henriques em debates na TV, como os da «Quadratura do Círculo», do «Eixo do Mal», do «Último Apaga a Luz», do «Governo Sombra», ou em outros onde a esquerda marxista mais coerente está sempre excluída e os seus argumentos arredados do grande público.
Faleceu Louzã Henriques
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Teria sido certamente um privilégio ouvir, nesses debates, a visão aberta e tolerante do mundo de Louzã Henriques, o Manel ou o Louzã para os (imensos) amigos e admiradores, espraiando a sua enorme cultura e a alegria de transmitir as raízes, os interesses e as expressões do povo que tanto amou, com o dom da sua verve encantatória, sempre profunda e rigorosa, que convocava quem o ouvia a pensar.
«Afinal, num mundo tão agreste, soubeste passear-te por vidros partidos, aguentar os balanços, num roteiro ideológico e humanista de que nunca te desviaste, nem mesmo quando a vida te sujeitou a provações muito cruéis. Também por isso muitos são os que admiram a tua coragem, virtudes cívicas, coerência em todas as dimensões, não só a política (de que soubeste fazer um acto de amor ao Povo), mas de tantas outras que fazem de ti um guerreiro do inconformismo, das paixões, da generosidade, dos afectos, mas também da mágoa, da crítica, do desassossego».
Estes são apenas fragmentos soltos recolhidos das palavras das autoras do livro atrás citado, que não esgotam a densa personalidade de Manuel Louzã Henriques, espírito brilhante e animador do associativismo cultural e desportivo estudantil na transição dos anos 50-60 do século passado, preso e torturado pela PIDE ainda jovem, conhecedor dos cárceres do Aljube, de Caxias e de Peniche, médico proibido de integrar os hospitais públicos pela ditadura, candidato da Oposição em 62 e activo participante em muitas outras eleições e iniciativas ligadas ao progresso político e cultural do país.
Criterioso coleccionador de instrumentos musicais, de máquinas de escrever, de costura, de fotografia, de alfaias agrícolas e instrumentos de trabalho nos campos (os últimos expostos no Museu Etnográfico Dr. Louzã Henriques), da enorme perda dessa personalidade notável, fica-nos «a imagem de um leão benévolo, irónico, bem humorado», como escreveu Fernando Martinho, do «ilustre psiquiatra apaixonado pela Antropologia e Etnografia, formador de gerações de psiquiatras, senhor de uma cultura que se diria enciclopédica, melómano e músico, piloto-aviador, jogador de râguebi, generoso e solidário, militante clandestino do seu PCP de sempre. A ninguém, como a Louzã veste tão bem a consigna que Marx também fez sua: “nada do que é humano me é estranho”».
Foi esse saber enciclopédico e telúrico que permaneceu escondido do grande público pela comunicação social dominante que, em outras áreas, também exclui gente como Sérgio Ribeiro, Avelãs Nunes, Eugénio Rosa ou o saudoso Miguel Urbano Rodrigues (com obra internacionalmente firmada sobre a complexa realidade da América Latina ou do Afeganistão), prefigurando uma verdadeira estratégia de censura política.
«A transição autoritária começa quando se degrada a democracia. E quando termina? Termina quando não há democracia»
MANUEL LOFF, HISTORIADOR
Manuel Loff, conhecido historiador, refere, numa entrevista à Pública, agência brasileira de notícias: «Quando falamos de regimes fascistas e regimes democráticos, falamos de processos de construção permanente da democracia e do fascismo. (…) A transição autoritária começa quando se degrada a democracia. E quando termina? Termina quando não há democracia».
Como também afirma, «nunca, em momento algum, ele (o fascismo) nasceu ou se consolidou apenas com fascistas. Todas as soluções autoritárias se sustentam mais sobre o apoio, sobre a intimidação e o medo, ou a indiferença dos demais. (…) A indiferença é tão central na sustentação de um regime quanto é o nível de apoio».
É contando com essa indiferença que a revista do Expresso de 20 de Julho de 2019, dá um contrastante destaque a uma extensa entrevista com José Miguel Júdice, outro natural de Coimbra, a propósito de um acontecimento tão importante para os portugueses como o facto de o entrevistado ir abandonar a advocacia das empresas para se dedicar à lucrativa arbitragem de grandes negócios internacionais.
É sempre de evitar a «fulanização» na avaliação das sempre complexas expressões sociais e políticas da nossa sociedade, mas há situações que pela sua exemplaridade o merecem.
Na capa da revista do Expresso, a fotografia de José Miguel Júdice a corpo inteiro serve de fundo para a bombástica citação: «o que me preocupa é o combate entre a democracia e a liberdade». E a entrevista, que ocupa dez páginas interiores, arranca com nova fotografia e o subtítulo «a sua biografia atravessa e confunde-se com a democracia».
Poder-se-ia pensar que se estava a entrevistar um velho lutador pela liberdade, como Louzã Henriques.
Mas José Miguel Júdice, que agora insulta e dá lições de moral e de democracia na TV aos que mais se sacrificaram para que ela exista, foi um assumido dirigente da extrema-direita do antigo regime, vice-presidente, enquanto estudante, da detestada Comissão Administrativa nomeada por Salazar para tomar conta da Associação Académica de Coimbra, depois da prisão e expulsão, em 1965, dos seus dirigentes eleitos, alguns dos quais tiveram de fugir para o estrangeiro.
Activista e líder da minoritária e radical ultra-direita estudantil da altura, que se exprimia através de panfletos de ódio assinados com siglas como «ANSA - Acção Nacional Socialista Académica» ou «Comité de Caça aos Comunistas», Júdice (que conforme confessa, alegando «uma estupidez total» do regime, foi «metido na função pública como informador da PIDE») foi também um destacado traidor na greve de 69, posicionando-se sempre do lado dos que prendiam e torturavam os seus colegas de Universidade.
«José Miguel Júdice, que agora insulta e dá lições de moral e de democracia na TV aos que mais se sacrificaram para que ela exista, foi um assumido dirigente da extrema-direita do antigo regime, vice-presidente, enquanto estudante, da detestada Comissão Administrativa nomeada por Salazar para tomar conta da Associação Académica de Coimbra, depois da prisão e expulsão, em 1965, dos seus dirigentes eleitos, alguns dos quais tiveram de fugir para o estrangeiro»
Com o 25 de Abril e a instauração das liberdades, Júdice, depois de transitoriamente preso pelo MFA, fugiu para Madrid para integrar a direcção (remunerada) do chamado «Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP)», organização terrorista de saudosistas da ditadura, financiada pela CIA e apoiada por organizações da ultra-direita internacional (como a «Gládio»1 e a «Aginter Press»2 ), que semeou o terror no Verão Quente de 75, ameaçando, agredindo e assassinando dirigentes e militantes de esquerda, incendiando e destruindo à bomba sedes de sindicatos, do PCP e de outras organizações antifascistas.
Foi dessa forma que a vida de Júdice «atravessou e confundiu-se com a democracia», nas palavras da entrevistadora Clara Ferreira Alves, uma das raras jornalistas lusas convidadas pelo mal-afamado Clube de Bildeberg, onde se traçam as grandes estratégias do império.
Com o restabelecimento das forças da direita depois do golpe de 25 de Novembro de 1975, Júdice regressou ao país e adaptou-se bem à reconstrução do domínio das grandes famílias que tinham constituído a base económico-financeira do «Estado Novo» (Mello, Espírito Santo, Ulrich, Champalimaud), nadando como um peixe no ambiente do novo business das devoluções e privatizações, continuando a defender o mesmo espírito de casta da alta finança e a constante agressão aos direitos dos trabalhadores.
«[A entrevista de José Manuel Júdice por Clara Ferreira Alves]: um festival delirante de afirmações falsas, contraditórias e confusas, que procuram baralhar o leitor mal informado ou que acredita em gambuzinos, criando uma cortina de fumo sobre o que foi, para facilitar uma melhor aceitação do que é»
E é com enorme lata que Júdice, na entrevista, relembra esse passado, afirmando ter sido «anarquista», «libertário», «resistente» (admirador de Álvaro Cunhal «por quem tive um fascínio»), dizendo que Salazar e Caetano «eram tudo aquilo de que discordava», que «odiava Franco», tendo feito uma biografia do líder fascista Primo de Rivera (fundador da criminosa Falange da estrema-direita espanhola) que considerava «antifranquista», referindo ainda ter tido «ideias radicais de esquerda e reputação de extrema-direita», e que «achava o colonialismo péssimo», como também «que devia haver uma reforma agrária».
Enfim, um festival delirante de afirmações falsas, contraditórias e confusas, que procuram baralhar o leitor mal informado ou que acredita em gambuzinos, criando uma cortina de fumo sobre o que foi, para facilitar uma melhor aceitação do que é.
Não tenho esperança de ver a foto de Manuel Louzã Henriques, o velho leão da Liberdade, a ocupar toda a capa da revista do Expresso, nem o seu busto na cidade de Coimbra (como o do bombista cónego Melo, em Braga), que, de resto, o próprio, com a modéstia dos grandes, seria o primeiro a não apreciar.
E não se trata, naturalmente, de pôr em competição gente de esquerda e de direita com as suas qualidades e defeitos, nem de analisar cada individuo sem olhar à complexidade do «eu e da sua circunstância», no dizer de Ortega e Gasset.
Mas a descarada adulteração do real, a troca de valores e a falta de pudor com que se lava um passado agressivo ligado à extrema-direita mais trauliteira, serve bem como amostra das opções ideológicas dos nossos media dominantes.
Na realidade, os falsos heróis que assim erigem e apregoam, enquanto apagam ou diminuem a vida e a memória dos que verdadeiramente o foram, abrem caminho às piores sombras do «populismo» reacionário que tanto dizem combater.
Como diz Manuel Loff, «a transição autoritária começa quando se degrada a democracia. E quando termina? Termina quando não há democracia».
Não podemos ficar indiferentes.
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