sexta-feira, 30 de outubro de 2020
Raquel Varela
Historiadora Labour Historian
Os Putos da Nazaré, e a F1 de Portimão
Posted on October 30, 2020
Nas ondas da Nazaré estavam 1000 miúdos, deixem-me dizer miúdos, acho muito carinhoso, e a maioria de máscara, a ver ondas num espaço público, sem pagar bilhete. Na Fórmula 1, em Portimão, estavam 27 mil num espaço privado, depois de pagar um bilhete. A polícia impediu os primeiros, e garantiu a segurança dos segundos. Ontem, aqueles jovens levaram com um banho de realidade da sociedade em que vivem. Aprenderam de uma só vez o complexo conceito de “feitiço” da mercadoria: o que inclui trocas com dinheiro brilha, o que inclui relações sociais não mercantilizadas é visto com maus olhos pelo Estado. Têm hoje, graças a esta medida descabida, menos respeito pela medidas anunciadas (a tal “fadiga” de que falam os epidemologistas), menos consideração pela polícia, e menos respeito pelo Estado, que os escorraçou dali com o recurso a agentes armados, e à lei. Nós podemos sempre no pensamento criar teorias que justifiquem as nossas posições, o que nunca podemos é inventar uma realidade que não existe. A lição que ontem o Estado deu na Nazaré e em Portimão é esta: pode-se ter prazer num desporto durante a pandemia e assistir a ele, desde que se pague. Nesse caso a polícia estará lá, num evento privado, para dar indicações de como se estaciona o carro…
Enfim, como dizia o Herman, não havia necessidade. A precipitada demonstração de força da policia na Nazaré teve o efeito contrário – trazer mais desobediência e não menos. Neste ponto o Governo também tem sido um desastre em matéria de gestão das medidas. Deixem de fazer dos miúdos – uma vez no Brasil perguntaram-me se eu estava a falar de “miúdos de galinha” e eu ainda fiquei a gostar mais da palavra – deixem, dizia eu, de fazer dos miúdos bodes expiatórios: as cadeias de contágio estão no trabalho e nas escolas, que não se podem fechar. Achar que impedimos a pandemia fechando os momentos de lazer quando acaba o trabalho e a escola é inaceitável, porque é falso – não combate a pandemia, instala a neurose colectiva, o medo, a tristeza, porque a sociabilidade pode e deve ser restrita, devemos educar para o cuidado, mas não podemos fechar as pessoas num isolamento total durante 2 meses, 6 ou 1 ano. O resultado disso, que tem sido amplamente descrito na comunidade científica de saúde, é por num lado doenças mentais graves, e por outro crescente descaso pelas medidas. Ainda não aconteceu em Portugal mas já aconteceu em vários países do mundo, manifestações gigantes, sem máscara e sem cuidado, porque as pessoas ficam desesperadas e fartas. Ora, para evitar isso é preciso equilíbrio nas medidas, educação e não repressão, cirurgicamente escolhida. Havia muito mais gente no metro às 8 da manhã fechados do que na Nazaré ao ar livre. E isso é uma verdade que todos sabemos – e que não podemos alterar porque não se pode fechar o trabalho. É preciso – insisto – reforçar os serviços de saúde. É aí que está toda a resposta.
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