Robin Cook
Desde 1966 , quando me formei em medicina , ouvi falar com tanta frequência da "crise na medicina" que me lembro da história do jovem pastor mentiroso . Você deve conhecer . Ele tantas vezes gritou "Lobo!" que ninguém mais prestava atenção . No entanto , até agora , as crises eram sempre anunciadas por grupos de interesse específico e , frequentemente , contraditórias : falta de leitos hospitalares , excesso de leitos ; falta de médicos , excesso de médicos . Todos ficavam confusos e indiferentes .
Hoje , porém , acredito que a "crise na medicina" é uma realidade . Infelizmente , tantas pessoas gritaram "Lobo!" no passado , que os meios de comunicação estão apenas começando a registar esta crise . Testemunhamos a gradativa - cada vez mais acelerada - intromissão de interesses comerciais na prática da medicina . É preciso compreender que a mentalidade empresarial , voltada a lucros e perdas , é frontalmente oposta às atitudes de altruísmo que formavam os alicerces da profissão médica . Essa dicotomia faz pressentir efeitos catastróficos sobre a base moral e ética da medicina . As mentes voltadas a grandes negócios vêem o campo da medicina como investimento altamente lucrativo , de baixo risco .
Essa mudança de rumo da medicina , em direcção aos interesse comerciais , reflete-se nas cadeias de hospitais particulares e sanatórios , nos fornecedores de suprimentos médicos e numa infinidade das mais diversas instituições para tratamento médico . Até a pesquisa se voltou para os negócios , como comprovam os laboratórios de biotecnologia .
Apesar do efeito traiçoeiro dessa evolução sobre a prática da medicina , a reacção é muito tímida . As publicações médicas têm encarado o processo com estranho desinteresse . Os médicos aderem à mentalidade empresarial ou ignoram-na . O público não se manifesta e os mídia só recentemente começaram a publicar artigos soando o alarme .
Tomei consciência da intrusão do comércio na medicina através da carta que recebi de um hospital . Na carta , a direcção do hospital informava-me que a taxa de ocupação estava baixa e que eu deveria internar mais pacientes para cirurgia - como se eu tivesse um stock de doentes a quem recusasse uma cirurgia necessária . Mais do que qualquer outro factor , essa carta fez-me compreender como o nosso sistema de medicina foi inadvertidamente organizado de modo a depender da super utilização de instalações e serviços e recompensá-la . Dessa forma , o sistema provoca o seu próprio aumento de custo . Não é de estranhar que os empresários se tenham interessado tanto .
A indústria farmacêutica é o mais antigo ramo de negócio ligado à medicina . A sua influência é muito grande . Entretanto , é bom lembrar que as indústrias farmacêuticas são empresas . Elas não visam o bem do público , por mais que procurem convencer-nos do contrário . O seu objectivo é obter retorno para o capital dos investidores .
O interesse comercial das indústrias farmacêuticas é confirmado pelas somas incríveis (biliões de dólares por ano) gastas na promoção dos seus produtos . Procuram , principalmente , influenciar o médico que , infelizmente , é uma presa bastante fácil . São poucos os médicos que nunca aceitaram um presente ou um favor de alguma indústria farmacêutica . Tenho até hoje a maleta preta que recebi quando cursava o terceiro ano de medicina e também já participei de vários simpósios patrocinados por indústrias farmacêuticas . Hoje em dia elas empregam mais recursos em promoções e publicidade do que em pesquisas ! Na verdade , os gastos promocionais são maiores do que o total de recursos gastos no treinamento dos alunos em todas as faculdades de medicina dos Estados Unidos .
Não seria justo insinuar que a indústria farmacêutica não contribuiu para o bem-estar da sociedade . No entanto , essa contribuição é apenas um sub-produto e não o verdadeiro objectivo . Existem também casos em que o bem-estar público foi completamente ignorado . Basta mencionar o desastre causado pela Talidomida ou a calamidade do DES (Diethylstilbestrol) , para perceber que interesses comerciais podem ter consequências lamentáveis .
As indústrias farmacêuticas têm comercializado produtos sabendo que poderiam ser perigosos ou ineficazes , ou ambos , visando somente o lucro .
A medicina está mudando . O relacionamento médico-paciente , antigamente a coisa mais importante , está cedendo lugar a interesses económicos e comerciais . O público tem o direito e a obrigação de saber que tipo de sistema de saúde se está desenvolvendo .
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