quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

A LIBERDADE NÃO ESTÁ A PASSAR POR AQUI




O presidente da República não achou melhor maneira de marcar o primeiro aniversário da guerra na Ucrânia do que condecorar o seu colega Zelensky com o Grande-Colar da Ordem da Liberdade.
Não nos devemos espantar. Um regime que assinalou recentemente a morte de Adriano Moreira como se ele tivesse sido um dos maiores vultos da política nacional — sem dizer uma sílaba sequer sobre o seu passado colonialista e fascista, nunca retractado — um regime assim define-se a si mesmo, e dele se pode esperar tudo.
O anúncio pela presidência da República seguiu-se a uma proposta do PAN, apresentada na Assembleia da República.
No projecto de resolução, a deputada Inês Real justifica a distinção a conceder a Zelensky “em reconhecimento da coragem demonstrada na defesa da liberdade, dos direitos humanos, da democracia e do Estado de direito na Ucrânia e na Europa”. Nada menos.
Isto diz o PAN de um país que, sob a batuta de Zelensky, baniu a oposição por decreto, proibiu os direitos de minorias (não só russa, mas também húngara e romena), persegue confissões religiosas indesejadas, instituiu a corrupção como modo de vida de dirigentes políticos e chefes militares, incentiva a perseguição sem
julgamento de alegados “colaboracionistas” (incluindo crianças e adolescentes), faz de milícias fascistas a sua tropa de choque, ergue a herói nacional um torcionário nazi aliado de Hitler.
É este o Estado de direito e é esta a Europa que, pelos vistos, vai na cabeça do PAN.
A Ordem da Liberdade, instituída depois do 25 de Abril, já serviu para condecorar este mundo e o outro, ao sabor das conveniências políticas do momento. Mas não se pode deixar de pensar como se sentirão na companhia de Zelensky pessoas como Nelson Mandela, Joaquim Chissano, Lula da Silva, Aristides de Sousa Mendes, ou o poeta José Gomes Ferreira, ou o historiador Fernando Rosas.
Verdadeiramente, ninguém na esquerda parlamentar levantou a voz para contrariar a jogada do PAN e a decisão de Marcelo.
O BE não pode dizer nada e por isso se cala. Quem, em 23 de fevereiro do ano passado, incentivou as autoridades portuguesas a aplicar sanções à Rússia, preparadas de há muito pelos EUA e a UE, posiciona-se irremediavelmente no campo do imperialismo Ocidental, por mais argumentos de “terceira via” que tente inventar.
Quem faz coro com toda a direita pressionando o PCP para que condene a Rússia, ignorando por completo o contexto que conduziu à guerra, coloca-se, sem escrúpulo de independência, ao serviço da propaganda persecutória do Ocidente.
Quem, em março de 2022, com zelo policial, exigiu que fossem “identificados e investigados” os chamados oligarcas russos com negócios em Portugal — acusando o Governo de inércia — fica inevitavelmente amarrado à cruzada dos EUA, da UE e da Nato, e não pode senão aplaudir a condecoração do seu agente em Kiev.
Quem, no mês seguinte, aplaudiu de pé a discursata bélica de Zelensky na Assembleia da República só pode sentir-se pesaroso por agora não se ter antecipado ao PAN, perdendo a ocasião de amealhar mais uns pontos de crédito como força respeitável do regime.
O PCP esquivou-se ao problema. Uma curta nota do gabinete de imprensa cumpre os serviços mínimos manifestando “indignação” pela condecoração e acusando o regime ucraniano de ser xenófobo, belicista e antidemocrático. Mas o secretário-geral Paulo Raimundo, interrogado sobre esta posição, parece ter querido adoçar a pílula. Dizendo embora que Marcelo “fez mal”, não deixou de sugerir uma alternativa supostamente aceitável: “Podia ter condecorado o povo ucraniano”.
Pode parecer muito simpático enaltecer “o povo” e não o líder. Mas com isso Paulo Raimundo apenas ilude a questão.
O que está no fundo da posição de Marcelo (e que a proposta do PAN bem contempla) é o propósito de, através de mais um gesto oficial, forjar um consenso nacional em torno da guerra; é amarrar o país à política de atiçar o conflito, na esteira das decisões tomadas pelos EUA e pela UE. E, perante isto, pôr o colar no pescoço de Zelensky ou dedicá-lo “ao povo” teria o mesmo significado.
O que diria Paulo Raimundo se o presidente da República, numa pirueta, decidisse condecorar, não Zelensky, mas “o povo ucraniano”? Ou Zelensky mais “o povo ucraniano”? Ou ainda “o povo ucraniano” na figura de Zelensky?
O que está em causa é a política de submissão à Nato, em geral e neste conflito em concreto. A condecoração soma-se às tropas enviadas para a Roménia ou a Lituânia, à exigência de aumentar os gastos militares, aos milhões de euros entregues por António Costa a Zelensky, à oferta de tanques Leopard, ou ao treino de militares ucranianos — tudo no propósito de prolongar a guerra o mais possível.
O que está em causa é o alinhamento do Governo e do Estado com os “duros” que se propõem “derrotar a Rússia” com a vida dos ucranianos. É isto, e nada mais, que a condecoração consagra.
(por Manuel Raposo -Boletim Notícias Independentes)








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