terça-feira, 12 de junho de 2012

“Foda-se” por Millôr Fernandes


  


(adaptado)



O nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à

quantidade de "foda-se!" que ela diz.

Existe algo mais libertário do que o conceito do "foda-se!"?

O "foda-se!" aumenta a minha auto-estima, torna-me uma

pessoa melhor.

Reorganiza as coisas. Liberta-me.

"Não quer sair comigo?! - então, foda-se!"

"Vai querer mesmo decidir essa merda sozinho(a)?! - então,

foda-se!"

O direito ao "foda-se!" deveria estar assegurado na Constituição.

Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos

extremamente válidos e criativos para dotar o nosso vocabulário

de expressões que traduzem com a maior fidelidade os nossos

mais fortes e genuínos sentimentos. É o povo a fazer a sua

língua. Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que

vingará plenamente um dia.

"Comó caralho", por exemplo. Que expressão traduz melhor a

ideia de muita quantidade que "comó caralho"?

"Comó caralho" tende para o infinito, é quase uma expressão

matemática.



A Via Láctea tem estrelas comó caralho!

O Sol está quente comó caralho!

O universo é antigo comó caralho!

Eu gosto do meu clube comó caralho!

O gajo é parvo comó caralho!

Entendes?

No género do "comó caralho", mas, no caso, expressando a

mais absoluta negação, está o famoso "nem que te fodas!".

Nem o "Não, não e não!" e tão pouco o nada eficaz e já sem

nenhuma credibilidade "Não, nem pensar!" o substituem.

O "nem que te fodas!" é irretorquível e liquida o assunto.

Liberta-te, com a consciência tranquila, para outras actividades

de maior interesse na tua vida.

Aquele filho pintelho de 17 anos atormenta-te pedindo o carro

para ir surfar na praia? Não percas tempo nem paciência.

Solta logo um definitivo:

"Huguinho, presta atenção, filho querido, nem que te fodas!".

O impertinente aprende logo a lição e vai para o Centro

Comercial encontrar-se com os amigos, sem qualquer problema,

e tu fechas os olhos e voltas a curtir o CD (...)

Há outros palavrões igualmente clássicos.

Pense na sonoridade de um "Puta que pariu!", ou o seu

correlativo "Pu-ta-que-o-pa-riu!", falado assim, cadenciadamente,

sílaba por sílaba.

Diante de uma notícia irritante, qualquer "puta-que-o-pariu!", dito

assim, põe-te outra vez nos eixos.

Os teus neurónios têm o devido tempo e clima para se

reorganizarem e encontrarem a atitude que te permitirá dar um

merecido troco ou livrares-te de maiores dores de cabeça.

E o que dizer do nosso famoso "vai levar no cu!"? E a sua

maravilhosa e reforçadora derivação "vai levar no olho do cu!"?

Já imaginaste o bem que alguém faz a si próprio e aos seus

quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha de

seu interlocutor e solta:

"Chega! Vai levar no olho do cu!"?



Pronto, tu retomaste as rédeas da tua vida, a tua auto-estima.

Desabotoas a camisa e sais à rua, vento batendo na face, olhar

firme, cabeça erguida, um delicioso sorriso de vitória e renovado

amor-íntimo nos lábios.

E seria tremendamente injusto não registar aqui a expressão de

maior poder de definição do Português Vulgar: "Fodeu-se!". E a

sua derivação, mais avassaladora ainda: "Já se fodeu!".

Conheces definição mais exacta, pungente e arrasadora para

uma situação que atingiu o grau máximo imaginável de

ameaçadora complicação?

Expressão, inclusivé, que uma vez proferida insere o seu autor

num providencial contexto interior de alerta e auto-defesa. Algo

assim como quando estás a sem documentos do carro, sem

carta de condução e ouves uma sirene de polícia atrás de ti a

mandar-te parar. O que dizes? "Já me fodi!"

Ou quando te apercebes que és de um país em que quase nada

funciona, o desemprego não baixa, os impostos são altos, a

saúde, a educação e … a justiça são de baixa qualidade, os

empresários são de pouca qualidade e procuram o lucro fácil e

em pouco tempo, as reformas têm que baixar, o tempo para a

desejada reforma tem que aumentar … tu pensas “Já me fodi!”

Então:

Liberdade,

Igualdade,

Fraternidade

e

foda-se!!!

Mas não desespere:

Este país … ainda vai ser “um país do caralho!” Atente no que lhe digo!

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