sexta-feira, 29 de outubro de 2021
A economia de escassez: só culpa da Covid?
por Max
No início eram as bicicletas. Depois foi o equipamento para exercício físico em casa. E farinha. E máquinas de costura. Actualmente, um dos maiores fornecedores de fruta da Austrália tem dois contentores cheios de maçãs estacionados na Nova Zelândia há quatro semanas, à espera de um navio para Los Angeles. Em Tóquio, é preciso esperar cinco meses para que um SUV seja entregue.
Parveen Sharma, presidente da American International Shipping Company adverte: "Se não estava num navio há quatro semanas, não o receberá no Natal". A circulação mundial das mercadorias tornou-se imprevisível, os atrasos na entrega são a ordem do dia e os produtos inalcançáveis estão a tornar-se cada vez mais numerosos.
Na Europa os efeitos mais amplos desta crise ainda não são totalmente visíveis, excepto na frente dos preços, mas pode ser apenas uma questão de tempo porque noutros lugares o problema já explodiu. O facto é que no mundo "desenvolvido" não estávamos habituados a experimentar uma escassez de produtos, a ver prateleiras vazias e a procurar mercadorias que já não estão disponíveis. O que está a acontecer nos principais mercados do mundo?
A culpa é da pandemia? Não brinquemos. Os elásticos dos confinamentos obrigatórios alternados a reaberturas em Países de todo o mundo aliaram-se às tensões comerciais já existentes, aos efeitos das "alterações climáticas", a uma crise "quase" militar em Taiwan, e a uma crise energética que de natural tem pouco ou nada. O resultado é uma confusão difícil de desvendar, que segundo os especialistas continuará a ter efeitos negativos durante os próximos dois anos. Nada menos.
Para europeus e norte-americanos, prontos a regressar à normalidade, será complicado e a razão reside numa cadeia de abastecimento que se tornou mais complexa, global e rígida ao longo dos últimos 30 anos. A maioria das empresas ocidentais de bens duradouros, tecnologia, vestuário, calçado e mobiliário descentralizaram a produção para a Ásia. Aviões, navios, comboios, camiões e armazéns que nunca param, em combinação com armazéns que descarregam e voltam a carregar mercadorias num ciclo até ontem sem interrupção. Basta pouco para mandar em crise o carrossel: bem vindos ao mundo globalizado.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a maioria das importações vem da China, mas frequentemente transitam pelo México e Canadá ou outros Países asiáticos e, por vezes, pelos Países da Europa de Leste. Durante um ano e meio, a pandemia tem vindo a impor bruscas paragens nas engrenagens, exasperando a escassez de armazéns, navios e camionistas, algo que já era grave antes da Covid e que agora está a bloquear o mecanismo: exactamente na altura em que a procura de bens dispara graças ao dinheiro dos estímulo público nos Estados Unidos e na Europa, ao regresso ao trabalho e ao aumento das compras online, que compensaram uma diminuição do consumo de serviços.
Possível que faltem meios de transportes e de armazenamento? Não apenas "possível" mas bem real. Nas últimas décadas, as empresas reduziram o custo de armazenagem, mantendo os stocks a um nível mínimo e confiando no transporte just-in-time. O just-in-time é perfeito para optimizar os custos e maximizar os lucros: um sistema de administração da produção onde tudo deve ser produzido, transportado ou comprado na hora exata. Explica a fantástica Wikipedia:
O conceito desse sistema está relacionado ao de produção por demanda, onde vende-se o produto para depois comprar a matéria prima e posteriormente fabricá-lo ou montá-lo.
Nas fábricas onde está implementado, o estoque de matérias primas é mínimo e suficiente para poucas horas de produção. Para que isto seja possível, os fornecedores devem ser treinados, capacitados e conectados para que possam fazer entregas de pequenos lotes na frequência desejada.
Magnífico, zero desperdício: o just-in-time é também amigo do ambiente. Só há um pequeno senão: se algo falhar, toda a cadeia vai por água abaixo. Vírus, Brexit, energia: tudo isso tornou mais difícil a circulação de mercadorias e eis servida a crise.
Na Ásia, do Vietname à Malásia, onde a cobertura vacinal permanece baixa, muitas fábricas e portos estão ainda fechados por causa da Covid. Os engarrafamentos de navios porta-contentores estão a crescer nas entradas dos portos: na semana passada, pelo menos 659 navios em todo o mundo estavam à espera de descarregar, e nos portos de Los Angeles e Long Beach (Califórnia), o tempo médio de escala aumentou mais de 70% desde o início da "pandemia", apesar de ambas as estruturas terem estado a operar 24 horas por dia durante os últimos dez dias.
Resultado: as faltas multiplicam-se, das especiarias à lã, dos brinquedos aos iPhones. Deus meus: os iPhones! Esta deve ser um crise séria.
Algumas faltam provocam outras faltas: a falta de semicondutores, por exemplo, forçou os fabricantes de automóveis a encerrar algumas fábricas. E a redução da oferta leva a preços mais elevados, o que, por sua vez, pode levar os bancos centrais a endurecerem as suas políticas monetárias por causa do crédito mal parado, com o risco de abrandar a recuperação económica.
Mas vale a pena repetir: não se trata apenas de Covid porque, para além das causas estreitamente ligadas à "pandemia", existem também nós nas relações comerciais internacionais que nunca foram resolvidos. O reforço do controlo dos Estados Unidos sobre as transferências de tecnologia para a China, por exemplo, contribuiu para a ruptura das cadeias de abastecimento dos semicondutores. E consequentes soluços no sector da energia. Na China, a produção interna de carvão já não é suficiente para satisfazer a procura, e estão a ocorrer cortes de energia. Muitas empresas, incluindo aqueles subcontratantes do fabricante americano de automóveis Tesla e Apple, tiveram de encerrar temporariamente em Setembro porque incapazes de pôr a trabalhar as máquinas.
E nem podemos esquecer os génios que apelam a um cada vez maior investimento em energias "verdes" neste momento particularmente sensível: os gestores asiáticos de centrais de produção eléctrica estão a exigir mais vacinas e menos emissões de CO2, mas os vacinados são poucos e o sistema ainda está fortemente baseado na queima de carvão. Isso determina uma maior procura de gás por parte dos Países asiáticos e a maior produção de hidrocarbonetos está a ser desviada para lá, onde estão dispostos a pagar mais do que na Europa ou na América do Norte. É o mercado que funciona.
No meio disso tudo é interessante notar como não haveria razões, do ponto de vista da oferta e da procura, para justificar o aumento dos preços de certas matérias-primas quais gás, petróleo, trigo, etc. Há a oferta, há a procura: tudo deveria continuar na mesma. Mas não é isso que acontece e as expectativas de um agravamento da situação, uma escassez de matérias-primas, e um consequente aumento dos preços, são retratadas pela recepção de Wall Strett do anúncio dos dados económicos do terceiro trimestre feito pela General Motors na Quarta-feira 27 de Outubro: apesar de um lucro superior ao esperado, as acções da GM caíram 4%. Isso porque os investidores esperam um quarto trimestre em queda.
Efeitos da "pandemia", consequências do Brexit, escassez de energia. Nada disso era previsível, correcto? Então tudo não passa dum mero azar, só pode. Um azar vendido como consequência da terrível "pandemia".
Ipse dixit.
Imagem: citytransportinfo CC0 1.0 Universal Public Domain Dedication.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário