sexta-feira, 22 de outubro de 2021

A SAÚDE DO NOSSO DESCONTENTAMENTO



Paulo Figueiredo


Uma pungente reportagem de Fátima Felgueiras na RTP acerca do total abandono pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) de jovens doentes de cancro (40 – 55). Também, a denúncia de que, por mês, cerca de 1.000 (MIL) diagnósticos precoces (fundamentais para salvar a vida das pessoas afectadas) não foram feitos – uma tremenda factura por pagar, diluída nos próximos anos, adivinha-se que sem responsáveis. A causa ? Porque só a COVID interessava, nada mais do que a COVID. De repente, subitamente, tudo quanto é lancinante doença e sofrimento humanos desapareceu. Como se uma pedrada fosse pior do que um tiro, uma ventania pior do que um furacão.
Consultas só por telefone – da iniciativa do técnico, obviamente, para justificar estar a “trabalhar”. Quando se tentava telefonar para o centro de saúde, ninguém atendia. Para o hospital, o/a senhor/a doutor/a não estava, nunca. Estaria em casa, depois iria telefonar. A vergonha mais crua da negação da assistência clínica, da relação terapêutica. Tudo em nome da segurança, justificavam. O SNS que temos, pois. Ao contrário do que se propagandeia por aí (para obter ganhos corporativos, nada de novo), regista-se o comportamento vergonhoso de muita gente, do próprio sistema. Que havia riscos, disseram eles/as, quando foram para casa, cobardemente, abandonando os seus doentes e as boas práticas de os tratar e ajudar. Quando, infamemente, as instituições avisaram do cancelamento de consultas de enorme importância, sem outra data marcada.
É com grande orgulho que, ao contrário de muitos, me reconheço na identidade nos meus quase 40 anos de prática hospitalar, com dedicação e evidência científica, para bradar que NEM UM único dia deixei de estar junto dos meus doentes. Que (salvo raríssimas opções, estas plenamente justificadas) nunca me enxovalhei profissionalmente dando consultas por telefone. Que assumi os riscos – mas não fiz mais do que o meu dever mais básico, evidentemente: será que alguém que escolhe prestar cuidados hospitalares (por definição, junto de pessoas gravemente doentes) não sabia que iria correr riscos ?
PS – Uma saudação à coragem da reportagem, sabida difícil nos tempos de ditadura informativa que impede o debate e pune qualquer contestação às catastróficas estratégias seguidas no combate à crise epidemiológica, venha de quem vier – até cientistas com Prémio Nobel foram miseravelmente censurados! O que justifica que tenha tido lugar tão tarde. Demasiado tarde, para muita gente desprotegida – porque padeciam ´”só de cancro”, não de COVID-19.

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