terça-feira, 5 de outubro de 2021

Pensar a História


Quando o Chile disse não: há 33 anos, em 5 de outubro de 1988, os chilenos compareciam às urnas para votar no plebiscito que decidiria se o ditador Augusto Pinochet permaneceria no poder. A opção "não" venceu o referendo, angariando 56% dos votos válidos. O plebiscito legitimou a reforma constitucional e a convocação de eleições presidenciais no ano seguinte, dando início ao processo de redemocratização.
A ditadura militar chilena foi instaurada em reação às transformações políticas, econômicas e sociais conduzidas pelo presidente Salvador Allende. Eleito em 1970 pela União Popular — coligação de agremiações socialistas, comunistas e sociais-democratas —, Salvador Allende empreendeu uma série de reformas que causaram descontentamento da elite chilena e dos setores reacionários da sociedade, além de alarmarem o governo dos Estados Unidos. A nacionalização de bancos e minas e a instituição da reforma agrária ocasionaram um boicote da Casa Branca ao cobre chileno e foram contestados por uma exaltada campanha anticomunista que encontrou respaldo significativo na classe média. Com financiamento da CIA, organizações de extrema-direita passaram a realizar atentados terroristas para desestabilizar o país e justificar a subversão da cadeia de comando das Forças Armadas.
Em 11 de setembro de 1973, o Palácio de La Moneda, sede do governo chileno, foi bombardeado durante um golpe de Estado, perpetrado com auxílio de militares estadunidenses. Salvador Allende foi deposto e assassinado e Augusto Pinochet, comandante-chefe do exército, assumiu o governo. Autointitulado "Chefe Supremo da Nação", Pinochet instituiu uma repressão brutal contra a esquerda, os movimentos sociais e as organizações sindicais, transformando o Chile em uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina. Imprensa e mídia foram censuradas, atividades políticas foram proibidas e os direitos civis e garantias constitucionais da população chilena foram revogados. Mais de 40 mil chilenos foram assassinados pelos aparelhos repressivos da ditadura militar e centenas de milhares foram forçados ao exílio.
Em paralelo à repressão política brutal, Pinochet incumbiu seu ministro das finanças, José Piñera, de operar o regresso do Chile à economia liberal. Baseando-se nas orientações de Milton Friedman, líder da chamada "Escola de Chicago" e expoente maior do liberalismo econômico, o governo chileno aplicou um receituário de austeridade fiscal, privatização de serviços públicos, abertura ao capital estrangeiro, corte de programas e benefícios sociais e redução dos investimentos estatais. Apoiados pelo aparato repressivo do Estado, os "Chicago Boys" transformaram o país em um legítimo laboratório de aplicação das formulações teóricas liberais, convertendo-o em um dos mais bem acabados exemplos de "fascismo de mercado". O Chile chegou até mesmo a privatizar seu sistema previdenciário e a extinguir o fundo público de pensões, adotando em seu lugar um esquema de capitalização.
A desregulação da economia e os incentivos fiscais atraíram fundos de investimentos bilionários e inundaram o país com capital especulativo, gerando uma ilusão de prosperidade. A classe trabalhadora, entretanto, não colheu quaisquer dividendos do "milagre econômico" propalado pelos liberais. Ao contrário: viu seu poder aquisitivo ser corroído pelo aumento da inflação e pelos arrochos salariais, assistiu ao aumento generalizado do desemprego, da pobreza e da desigualdade social e sofreu com o sucateamento e desmonte dos serviços públicos. A ilusão durou pouco tempo. A tentativa de aprofundar a liberalização econômica durante a gestão de Hernán Büchi no ministério das finanças causou uma retração de 30% do PIB chileno e transformou o país numa das nações com maior desigualdade social e de renda no mundo. A proporção da população chilena vivendo abaixo da linha da pobreza mais que dobrou em relação ao governo de Salvador Allende, saltando de 20% no início dos anos 70 para 44,4% em 1987.
A deterioração das condições de vida da classe trabalhadora insuflou a mobilização popular contra a ditadura militar e protestos eclodiram em todo o país. Em 1986, comandos da Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR) tentaram assassinar Pinochet durante uma visita do mandatário ao Cajón de Maipo. O ditador respondeu decretando estado de sítio e aumentando a repressão policial. A instabilidade política e a persistência dos problemas econômicos, entretanto, afetaram a base de apoio do governo. Setores da opinião pública e partidos tradicionais que eram favoráveis ao regime passaram a reivindicar a redemocratização. Ao mesmo tempo, a revelação das atrocidades cometidas por agentes da ditadura militar chilena gerou a pressão internacional pela abertura do regime. Durante uma visita ao país, o Papa João Paulo II pediu pessoalmente ao mandatário que renunciasse.
Buscando cooptar parte da oposição para preservar-se no comando do país, Pinochet iniciou um processo de distensão das medidas autoritárias, habilitando a criação de novos partidos políticos (embora vetando as agremiações de orientação marxista), relaxando a censura governamental sobre os órgãos de imprensa e permitindo o retorno dos exilados ao Chile. O governo também aprovou uma nova Lei Orgânica Constitucional que visava revestir com aspecto de legalidade o regime ditatorial. As novas disposições legais, entretanto, abriam brecha para que a oposição reivindicasse o cumprimento do texto da Constituição de 1980, que em suas disposições transitórias determinava a necessidade de convocação de plebiscito para ratificar o indicado da Forças Armadas para ocupar a presidência.
O referendo foi marcado para 5 de outubro de 1988. Os eleitores chilenos teriam de responder "sim" ou "não" à renovação do governo da Junta Militar. Caso o "sim" vencesse, Pinochet exerceria mais um mandato de oito anos e permaneceria na presidência do Chile até, no mínimo, março de 1997. Se a maioria optasse pelo "não", o mandato presidencial de Pinochet seria prorrogado por mais um ano até 11 de março de 1990, quando seriam então convocadas eleições para escolher um novo presidente e os parlamentares. Operando a máquina pública e respaldado pelo apoio de amplos setores do empresariado e das classes médias, Pinochet acreditava que poderia vencer o plebiscito com alguma facilidade e revestir seu regime de aparente legitimidade democrática. O general, entretanto, foi derrotado nas urnas: 56% dos eleitores chilenos escolheram o "não", aprovando a convocação de novas eleições.
O anúncio da vitória do "não" provocou uma onda de celebrações populares em todo o país. Na capital, Santiago, milhares de pessoas se concentraram para uma verdadeira festa a céu aberto na Avenida Libertador General Bernardo O'Higgins. Zombando do general e dos "fanáticos do sim", o jornal Fortín Mapocho publicou uma manchete cáustica sobre o referendo: "Pinochet concorreu sozinho e terminou em segundo lugar". Apesar da resistência inicial, Pinochet reconheceu a legitimidade do plebiscito durante um anúncio transmitido em rede nacional. Um novo referendo realizado no ano seguinte aprovou uma reforma constitucional, eliminando parte das restrições autoritárias presentes no texto da carta magna. Em dezembro de 1989, foram realizadas as primeiras eleições para a presidência da república desde a queda de Salvador Allende. O pleito foi vencido por Patricio Aylwin, candidato do Partido Democrata Cristão (PDC), incumbido de liderar o governo de transição.
Pinochet deixou a presidência em 11 de março de 1990, mas seguiu chefiando as Forças Armadas e agindo para desestabilizar o novo governo. O ex-ditador permaneceu comandando os militares até 1998, assumindo em seguida o cargo de senador vitalício, criado por si. A despeito da conclusão do processo de redemocratização, parte substancial do sistema político e do modelo econômico ultraliberal instaurados pela ditadura de Pinochet seguem até hoje em vigor no Chile, como parte do acordo institucional que viabilizou o fim do regime. Embora tenha estado presente em algumas da coalizões que ocuparam a presidência desde o fim da ditadura, a esquerda chilena nunca obteve a maioria de dois terços necessária para revogar o texto constitucional. Os protestos massivos que eclodiram no país desde 2019, entretanto, forçaram o presidente Sebastián Piñera a convocar uma nova Assembleia Constituinte. A esquerda obteve a maioria dos assentos no pleito que escolheu os representantes que redigirão a nova carta magna, dando ao país, novamente, a chance de dizer "não" a Pinochet.



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