segunda-feira, 22 de novembro de 2021
Estado da Insegurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2021
por Max
O "Estado da Insegurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2021" é o novo e pontual estudo conduzido conjuntamente pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA), o Programa Alimentar Mundial (PAM), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O estudo de 44 páginas evidencia algo inacreditável: no final do ano passado, a fome aumentou em termos absolutos e relativos, ultrapassando o crescimento da população. Isso significa que 10% dos habitantes do planeta estavam na condição de insegurança alimentar em comparação com 8.4% de 2019.
As áreas mais afectadas? A Ásia com 418 milhões; a África, 282 milhões; e a América Latina, mais Caraíbas, com 60 milhões.
O estudo completo, de 236 páginas em língua inglesa, pode ser visionado neste link. Além disso, estão disponíveis versões resumidas em vários idiomas (mas não o português) que podem ser encontradas nesta ligação (na linha Access the Brief).
A seguir a tradução integral da secção "Principais Mensagens" (páginas 5 a 8) que, como diz o título, sintetiza o trabalho nos seus pontos mais significativos. Um trabalho que apresenta uma clara insistência em realçar factores causais em detrimento de outros, que nem chegam a ser citados. Mas disso vamos falar depois.
O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2021
Mensagens fundamentais
Já muito antes da pandemia de doença coronavírus (Covid-19), não estávamos no caminho certo para enfrentar o compromisso de acabar com a fome e a subnutrição globais em todas as suas formas até ao final de 2030. E agora, a pandemia tem complicado significativamente este objectivo.
Após cinco anos de pequenas mudanças, a prevalência da subnutrição aumentou 1.5 pontos percentuais em 2020 para se situar em cerca de 9.9 por cento, tornando mais difícil o desafio de atingir o objectivo de zero fome até 2030.
Em 2020, entre 720 e 811 milhões de pessoas em todo o mundo sofreram de fome. Se for considerado o ponto médio do intervalo estimado (768 milhões), mais 118 milhões de pessoas passaram fome em 2020 do que em 2019.
Em comparação com 2019, foram mais cerca de 46 milhões de pessoas em África, mais 57 milhões na Ásia e mais 14 milhões na América Latina e nas Caraíbas.
Cerca de 660 milhões de pessoas poderão ainda estar a sofrer de fome em 2030, em parte como resultado dos efeitos duradouros do pandemia Covid-19 na segurança alimentar mundial, mais 30 milhões do que se a pandemia não tivesse ocorrido.
Embora a prevalência global da insegurança alimentar moderada e grave tenha vindo a aumentar lentamente desde 2014, o aumento estimado em 2020 foi equivalente à soma dos cinco anos anteriores. Em 2020, quase uma em cada três pessoas no mundo (2.37 mil milhões) não tiveram acesso a alimentos adequados, um aumento de quase 320 milhões de pessoas em apenas um ano.
Quase 12 por cento da população mundial foi severamente afectada por grave insegurança alimentar em 2020, o equivalente a 928 milhões, mais 148 milhões de pessoas do que em 2019.
Globalmente, a diferença de género na prevalência da insegurança alimentar moderada ou grave aumentou ainda mais no ano do pandemia de Covid-19.
Os persistente elevados níveis de desigualdade de rendimentos, juntamente com o elevado custo de dietas saudáveis, significou que em 2019 estas tornaram inacessíveis para quase 3 mil milhões de pessoas em todas as regiões do mundo, especialmente para os pobres.
Globalmente, a desnutrição em todas as suas formas continua a ser um desafio. Embora ainda não seja possível determinar completamente o impacto da pandemia de Covid-19 em 2020, estima-se que 22% (149.2 milhões) de crianças com menos de cinco anos de idade sofreram de atrasos no crescimento, 6.7 % (45,4 milhões) emaciação e 5.7 % (38.9 milhões) teve excesso de peso. Espera-se que os números reais sejam mais elevados devido aos efeitos da pandemia.
Em África e Ásia vivem mais de 9 em cada 10 crianças atrofiadas, mais de 9 em cada 10 crianças com emaciação e mais de 7 em cada 10 crianças com excesso de peso.
A nível mundial, estima-se que 29.9% das mulheres com idades compreendidas entre os 15-49 anos fossem anémicas, o que é actualmente determinado pelo indicador 2.2.3 dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Mesmo assim, os dados mostram diferenças regionais significativas. Mais de 30 por cento das mulheres em África e na Ásia estavam anémicas, em comparação com 14.6% das mulheres na América do Norte e na Europa. A obesidade adulta tem aumentado significativamente em todas as regiões.
No geral, o mundo não está no bom caminho para cumprir os objectivos globais em qualquer um dos indicadores nutricionais até 2030. O actual ritmo do progresso sobre o atrofiamento infantil, o aleitamento materno exclusivo e o baixo peso à nascença é insuficiente. Isso enquanto em termos de progresso sobre o excesso de peso e a emaciação das crianças, a anemia nas mulheres em idade fértil e a obesidade adulta estagnou ou está a piorar.
É provável que a pandemia de Covid-19 tenha tido um impacto na prevalência de múltiplas formas de subnutrição e os seus efeitos são susceptíveis de persistir para além de 2020. Isto será agravado pelos efeitos intergeracionais da malnutrição e os consequentes efeitos sobre a produtividade.
Os conflitos, a variabilidade e os extremos do clima, bem como os abrandamentos e recuos económicos (exacerbados pela pandemia da Covid-19) são importantes factores de insegurança alimentar e de subnutrição. A sua frequência e intensidade continuam a aumentar e juntos estão a ocorrer com mais frequência.
A inversão da tendência para a prevalência da subnutrição em 2014 e o seu aumento constante são largamente atribuídos a países afectados por conflitos, extremos climáticos e deterioração económica, bem como países com elevada desigualdade de rendimentos.
De 2017 a 2019, a prevalência da subnutrição aumentou 4% nos países afectados por um ou mais dos principais factores acima referidos e diminuiu em 3% nos países por estes não afectados por eles. O elevado nível de desigualdade aumentou o impacto negativo destes factores, especialmente nos países de rendimento médio.
Durante o mesmo período, os países afectados por múltiplos factores causais tiveram os maiores aumentos na prevalência da subnutrição, 12 vezes a taxa dos países afectados por um único factor.
Os principais factores causais estão a aumentar o custo dos alimentos nutritivos. Isto, combinado com baixos rendimentos, está a contribuir para a inviabilidade de dietas saudáveis, particularmente em países afectados por múltiplos factores causais.
Em 2020, quase todos os países de baixo e médio rendimento foram afectados por deterioração económica resultante da pandemia. Quando também houver desastres relacionados com o clima, conflitos ou uma combinação destes, é maior a prevalência da subnutrição em África, seguida da Ásia.
Uma vez que estes factores principais afectam negativamente a segurança alimentar e nutricional, levando a efeitos múltiplos e combinados em todos os sistemas alimentares, existe a necessidade de uma perspectiva dos sistemas alimentares para melhor compreender as suas interacções e para encontrar pontos de entrada para intervenções que abordem estes factores.
À medida que os sistemas alimentares se transformam e se tornam mais resilientes para abordar especificamente os principais efeitos causais de uma forma direccionada, podem fornecer dietas acessíveis e saudáveis que sejam sustentáveis e inclusivas. Além disso, podem tornar-se uma poderosa força motriz para acabar com todas as formas de fome, insegurança alimentar e desnutrição, para todos.
Consoante o contexto, estão disponíveis seis vias que conduzem à transformação dos sistemas alimentares. Primeiro, a integração dos aspectos humanitários, de políticas de desenvolvimento e construção da paz em zonas afectadas por conflitos. Em segundo lugar, a melhoria da resiliência climática dos diferentes sistemas alimentares. Em terceiro lugar, reforçar a resiliência das populações mais vulneráveis face aos desafios económicos. Em quarto lugar, a intervenção em todas as cadeias de abastecimento alimentar para reduzir o custo dos alimentos nutritivos. Quinto, combater a pobreza e as desigualdades estruturais, assegurando que as intervenções sejam em favor dos pobres e inclusivas. Finalmente, o reforço dos ambientes alimentares e a introdução de mudanças no comportamento dos consumidores para promover hábitos alimentares com efeitos positivos na saúde humana e o ambiente.
Tendo em conta o facto de a maioria dos sistemas alimentares é afectada por mais de um factor causal, podem ser simultaneamente formuladas carteiras completas de políticas, investimentos e leis através de diferentes vias. Isto irá maximizar os seus efeitos combinados na transformação dos sistemas alimentares, explorando soluções vantajosas para ambas as partes e mitigando os compromissos indesejáveis.
A coerência na formulação e na implementação de políticas e investimentos em alimentação, saúde, ambiente e protecção social é também essencial para aproveitar as sinergias para encontrar soluções mais eficientes e eficazes.
São necessárias abordagens sistemáticas para carteiras coerentes de políticas, investimentos e leis, e para facilitar soluções vantajosas para todos, ao mesmo tempo que são geridas as compensações, incluindo as abordagens territoriais, ecossistémicas e baseadas nos sistemas alimentares dos povos indígenas, bem como intervenções que abordam sistemicamente condições de crise prolongada.
Embora 2020 tenha sido um ano de enormes dificuldades em todo o mundo, pode também servir como um aviso de eventos indesejáveis que podem ocorrer se não forem tomadas medidas mais determinadas para a mudança de rumo. Cada um dos principais factores causais tem a sua própria trajectória ou carácter cíclico e continuará a existir.
Durante a Cimeira do Sistema Alimentar 2021 a ONU apresentará uma série de acções concretas para provocar uma transformação dos sistemas alimentares do mundo. As seis vias de transformação identificadas neste relatório são necessárias para construir resiliência a fim de abordar concretamente os impactos negativos dos principais factores subjacentes ao recente aumento da fome e ao abrandamento do progresso na redução de todas as formas de fome e desnutrição.
Ar frito: falta de vontade
Em bom italiano: ar frito. Um documento em boa parte inútil que recusa encarar as mais profundas razões da fome e da desigualdade. Um estudo que transmite uma ideia falsa e perigosa: a fome aumentou ao longo do último ano por causa da "pandemia" de Covid.
Sim, é verdade, os efeitos da "pandemia" não podem ser negados; mas não é culpa do vírus se existem centenas de milhões de pessoas que não vivem mas apenas sobrevivem (quando conseguem sobreviver), pois a "pandemia" limitou-se a exacerbar uma realidade fruto dum sistema económico doentio, no qual os Países onde é maior o nível de vida não actuam como poderiam e deveriam para ajudar os mais desfavorecidos.
Guerras e eventos climáticos extremos são tristes acontecimentos pontuais, desde sempre fonte de miséria: mas isso não explica por qual razão a fome está concentrada apenas em determinadas áreas do planeta, nomeadamente África, Ásia e parte da América do Sul. Qual guerra varreu a América do Sul ao longo de 2020? Qual evento climático extremo? A Covid foi a única razão do aumento da fome? Da mesma forma, apontar a "pandemia" como factor primário em muitos Países africanos é ridículo, pois trata-se do Continente que menos sofreu em termos de infecções.
O que o relatório no diz é que falta uma séria tentativa para eliminar ou mitigar, os efeitos da fome naquelas zonas do globo: é simplesmente inconcebível que em 2021 a desnutrição atingia tais patamares, é absurdo que o problema da fome não seja resolvido ou, aos menos, grandemente reduzido. Temos recursos técnicos, económicos e financeiros para enfrentar esta praga: se não for feito é apenas por falta de vontade. E porque há algo que fala mais forte.
Analisar as "seis vias que conduzem à transformação dos sistemas alimentares" ajuda a entender esta falta de vontade, consequência directa dum sistema doentio qual é o nosso. Excluindo as primeiras e mais óbvias propostas (a "integração dos aspectos humanitários, das políticas de desenvolvimento e a construção da paz em zonas afectadas por conflitos", "a melhoria da resiliência climática dos diferentes sistemas alimentares" e o reforço da "resiliência das populações mais vulneráveis face aos desafios económicos"), temos a "intervenção em todas as cadeias de abastecimento alimentar para reduzir o custo dos alimentos nutritivos" e combater "a pobreza e as desigualdades estruturais": estes são os pontos centrais, os únicos capazes de proporcionar efeitos de médio e longo prazo também nos ambientes alimentares. Mas são exactamente estes os pontos onde é mais evidente é o papel do lucro e da exploração, em todas as suas formas, que o nosso actual sistema socioeconómico apoia.
OGMs e coragem
Vamos fazer um exemplo: os alimentos geneticamente modificados (OGMs).
É dos primeiros anos '80 que os OGM estão disponíveis e, em 2014, o The Guardian titulava "Não há escolha: temos de cultivar OGMs agora" como parte da solução para resolver a fome no mundo. Não vamos aqui falar do facto dos OGMs serem ou não saudáveis pois não é isso que interessa agora: o que temos de perceber é que, segundo muitos, os OGMs são a solução. Segundo a pagina de Wikipédia (versão portuguesa), os produtos OGM actualmente comercializados no Brasil incluem soja, milho e feijão. É evidente o alegado benefício no âmbito da nutrição se estes produtos fossem distribuídos nos Países mais desfavorecidos.
Mas a quem pertencem estes OGMs? Resposta: Monsanto, BASF, Syngenta, Bayer, DowAgroSciences e DuPont. Todas empresas privadas. Ou seja: empresas que existem apenas para produzir lucros. E isso, como é evidente, contrasta com qualquer tentativa de ajudar quem sofre: o que podemos lucrar com pessoas que nem a comida para a sobrevivência conseguem juntar?
Isso, claro está, sempre partindo do pressuposto, como afirma Bill Gates, que "os OGMs são a solução para a desnutrição e a fome no mundo", o que é falso. E demonstra-lo é simples: a Europa conheceu a fome também ao longo dos séculos e o problema não foi resolvido com os organismos geneticamente modificados. Foi resolvido principalmente ampliando e distribuindo a base da riqueza na sociedade. Com intervenções para melhorar as condições sanitárias e optimizar os processos produtivos da agricultura? Sim, óbvio: mas estas últimas intervenções foram tornadas possíveis só com o aumento da riqueza. Mais recentemente, o mesmo percurso foi seguido na Rússia e na China, com os mesmos efeitos.
Por qual razão tais intervenções não são possíveis na África, por exemplo? Por uma razão bastante simples: colonialismo. Não tanto o passado mas sobretudo o presente. A África hoje é uma terra de conquista, cujos recursos são explorados por empresas ocidentais e não investidos localmente. É isso que o documento "Estado da Insegurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2021" deveria dizer em letras extremamente claras, apontando-lo qual problema absolutamente fundamental.
Mas não é isso que acontece: falta a coragem para uma tal tomada de posição. A verdadeira razão fica entre as linhas, apenas sugerida e misturada entre Covid e "eventos climatéricos extremos". Então ficamos com um texto cuja única função é limpar as nossas consciências: a fome aumentou? Sim, mas não é culpa nossa: houve a Covid (mas nós somos bons e criámos as vacinas) e depois houve o clima adverso (mas nós somos bons e estamos a eliminar o terrível CO2).
Resumindo: foi o destino. Mas tranquilos: em breve haverá a Cimeira do Sistema Alimentar 2021 da ONU, o quê podemos fazer mais?
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