terça-feira, 2 de novembro de 2021

. . . sabedoria , serenidade e bom-senso q.b. (em vias de extinção . . .)






Pedro Girão


O AZUL E O VERMELHO

Não tenho especial gosto em falar da morte. Mas falo dela como falo das flores, da vida, do mar ou das árvores. Há nela uma naturalidade simples e tranquila que muita gente ignora ou rejeita.
Sabemos bem que tudo começa e tudo acaba: a morte faz parte da vida. Mas a modernidade transformou-a num não-tema, num tabu. É em boa parte isso que justifica as reacções desajustadas das pessoas perante o Covid: de repente, um não-tema passou a ser o tema central das nossas vidas, exponenciado pela loucura mediática, todos os dias, a toda a hora, em horário nobre. Um mundo que rejeita a ideia da morte não está preparado para perceber que a vida está apenas a seguir o seu curso. Uma sociedade que há anos envia os seus familiares mais queridos morrer desumanamente no hospital, em vez de morrerem humanamente em casa, tem o egoísmo vírico de evitar pensar na morte, e sobretudo tem medo. Tem medo da falta de controlo. Tem medo da morte porque na verdade tem medo da vida.
Durante milhares de anos, a morte era diária e inevitável. Até há cerca de cem anos, uma apendicite era mortal. Sim, ver um filho adolescente ficar com cólicas, com febre e depois, progressivamente, lentamente, inelutavelmente, vê-lo morrer em 5 dias era normal. A Ciência e a Medicina tornaram esse cenário absurdo aos nossos olhos. (Mas cem anos foi ali, ao virar da esquina…) Hoje, a modernidade bem pensante acha-se dona da vida, da morte e do próprio destino. A ridícula modernidade das novas causas acha-se convictamente dona do mundo e da Natureza, com a pretensão delirante de que consegue controlar e alterar o clima, seja em que sentido for. (E rirmo-nos dessa falácia irá em breve ser um novo negacionismo.)
A modernidade apropriou-se da palavra “ciência” e usa-a como uma nova fé - e com ela quer executar novos autos de fé. A modernidade desconhece a palavra humildade, tanto quanto evita a palavra morte. E também desconhece a dúvida ou o contraditório - o que é bom, pois será essa cegueira fanática e essa tendência ditatorial que levará rapidamente essas ideias ao descrédito e à própria morte (essa morte em não querem pensar).
Hoje, em Lamego, na minha terra, meu princípio e meu fim, o cenário é este, o da fotografia que tirei ontem à noite: uma cidade dos vivos e uma cidade dos que já partiram. Duas cidades nitidamente distintas, até nas cores, mas uma só cidade, tranquila e em paz. A morte é a paz necessária numa vida em que procuramos a paz possível. A morte de quem nos é próximo dói; mas a sua memória permanece, tão viva como a memória dos que ainda estão vivos, nos foram próximos, mas que não vemos há 5, 10, ou 20 anos. A morte de trezentos portugueses por dia é normal, não o esqueçamos; faz parte da vida. E é na vida (que inclui a morte) que nos devemos focar, hoje e sempre. Dia de defuntos, mas dia de vivos.

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