segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Frei Betto


Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos e em paz nos seus mantos cor de açafrão. Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois modelos produz felicidade?' Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: 'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'. Comemorei: 'Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde'. 'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã...' 'Que tanta coisa?', perguntei. 'Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina', e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: 'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação! Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados. Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto?'. 'Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!' Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa? Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual. Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. E somos também eticamente virtuais... A palavra hoje é 'entretenimento'; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro,você chega lá!' O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose. O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, autoestima, ausência de estresse. Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping-center. É curioso: a maioria dos shoppings-centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas... Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Deve-se passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do Mc Donald... Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: 'Estou apenas fazendo um passeio socrático.' Diante de seus olhares espantados, explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia:... "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser Feliz"!!!

sábado, 7 de janeiro de 2012

Porque é que os Estados devem pagar 600 vezes mais do que os Bancos? Michel Rocard, antigo primeiro-ministro e Pierre Larrouturou, economista

A Federal Reserve tem secretamente emprestado aos bancos em dificuldade a soma fantástica de 1 200 mil milhões à taxa surpreendentemente baixa de 0,01%. Trata-se de valores incríveis. Já se sabia que, no final de 2008, George Bush e Henry Paulson tinham colocado em cima da mesa a astronómica quantia de 700 mil milhões (540 mil milhões de euros) para salvar os seus bancos. Uma soma colossal. Mas um juiz americano, recentemente, deu razão aos jornalistas da Bloomberg que pretendiam que o seu Banco Central fosse transparente quanto aos apoios financeiros concedidos ao sistema bancário. Depois de terem analisado perto de 20.000 páginas de documentos diversos, Bloomberg mostra que a Reserva Federal secretamente emprestou aos bancos em dificuldade 1.200 mil milhões à taxa surpreendentemente baixa de 0,01%. Ao mesmo tempo, em muitos países, as pessoas sofrem de planos de austeridade impostos pelos governos aos quais os mercados financeiros não aceitam emprestar alguns milhares de milhões, a taxas de juro inferiores a 6,7 ou mesmo a 9%! Asfixiados por estas taxas de juros, os governos são "obrigados" a bloquear as pensões, os apoios às famílias ou a cortar nos salários dos funcionários públicos e nos investimentos públicos, o que faz aumentar o desemprego e nos fará afundar, em breve, numa profunda e muito grave recessão. Será normal que em caso de crise, os bancos privados, que se financiam normalmente a 1% junto dos bancos centrais, possam beneficiar de taxas a 0,01%, mas que, na mesma situação de crise, alguns Estados-Membros sejam obrigados a pagar em vez disso taxas de 600 ou 800 vezes maiores? "Ser governado pelo dinheiro organizado é tão perigoso como ser governado pelo crime organizado," disse Roosevelt. E Roosevelt tinha razão. Estamos a viver uma crise do capitalismo desregulado que pode ser suicida para a nossa civilização. Como o escreveram Edgar Morin e Stéphane Hessel no seu livro Le Chemin de l'espérance (Fayard, 2011), as nossas sociedades devem escolher entre a metamorfose ou a morte? Vamos nós esperar até que seja tarde demais para abrir os olhos? Vamos nós esperar até que seja tarde demais para compreender a gravidade da crise e para escolher a metamorfose, antes que as nossas sociedades se autodestruam? Não temos nós a possibilidade aqui e agora para desenvolver as dez ou quinze reformas concretas que tornariam possível esta metamorfose? Nós queremos somente mostrar que é possível afirmar que Paul Krugman está errado quando este diz que a Europa está enfiada numa "espiral da morte". Como dar oxigénio às nossas finanças públicas? Como agir sem modificar os Tratados, o que exigiria meses de trabalho e se tornará impossível se a Europa é cada vez mais detestada pelos povos? Ângela Merkel tem razão quando diz que nada deve incentivar os governos a continuar a sua fuga para a frente. Mas a maior parte do dinheiro dos empréstimos que os nossos Estados têm estado a contrair nos mercados financeiros é de dívidas antigas. Em 2012, a França deve pedir cerca de 400 mil milhões: 100 mil milhões que correspondem ao défice do orçamento (que seria quase nulo se terminasse com os benefícios fiscais concedidos há dez anos) e 300 mil milhões que correspondem a dívidas antigas, que expiram e que seremos incapazes de reembolsar se nos não voltarmos a endividar nesses mesmos montantes horas antes de ter liquidado as somas em dívida até àquela data. Fazer pagar agora, a taxas de juros colossais, as dívidas acumuladas há cinco ou dez anos atrás não conduz a responsabilizar os governos, mas sim a asfixiar as nossas economias e para benefício exclusivo de alguns bancos privados: sob o pretexto de que há um risco, estes emprestam a taxas muito elevadas, embora sabendo que não há provavelmente nenhum risco real., uma vez que o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF) tem como função assegurar a solvência dos Estados mutuários. É necessário acabar com dois pesos, duas medidas: tomando como referência o que fez o Banco Central Americano para salvar o sistema financeiro, propomos que a “dívida velha" dos nossos Estados possa ser refinanciada a uma taxa perto de 0%. Não é necessário modificar os tratados europeus, para implementar esta ideia: claro, o Banco Central Europeu (BCE) não está autorizado a emprestar aos Estados-Membros, mas pode emprestar sem limite aos organismos de crédito públicos (artigo 21.3 dos estatutos do sistema europeu de bancos centrais) e às organizações internacionais (artigo 23 dos mesmos estatutos). Pode, portanto, emprestar a 0,01% ao Banco Europeu de Investimento ou aos organismos públicos, que podem emprestar a 0,02% aos Estados que se endividam para pagar as suas dívidas antigas. Nada impede que se possa pôr em marcha estes financiamentos já, a partir de Janeiro! Não se fala sequer do que se devia falar: o orçamento da Itália mostra um excedente primário. Portanto, esta estaria em equilíbrio se a Itália não tivesse que pagar encargos financeiros cada vez mais elevados. Será necessário deixar afundar a Itália numa recessão e na crise política, ou deve-se aceitar que se deve colocar um fim nas “rendas” dos bancos privados? A resposta deve ser evidente e óbvia para que se possa agir imediatamente a favor do bem comum. O papel que os Tratados atribuem ao BCE é o de garantir a estabilidade de preços. Como se pode ficar indiferente quando alguns países veem o preço (o custo) dos seus títulos do Tesouro duplicar ou mesmo triplicar em poucos meses? O BCE também deve garantir a estabilidade das nossas economias. Como é que se pode ficar sem atuar quando o preço da dívida nos ameaça lançar numa profunda recessão "mais grave do que a de 1930", de acordo com o governador do Banco Central de Inglaterra? Mantendo-nos numa situação de respeito absoluto pelos Tratados, nada proíbe ao BCE de atuar com força de modo a fazer baixar o preço da dívida. Nada, mas mesmo nada, o proíbe de agir, e tudo o incita a que o faça. Se o BCE é fiel aos tratados, ele deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que diminua o custo da dívida pública. A opinião geral é a de que a inflação é mais preocupante! Em 1989, depois da queda do muro de Berlim, bastou um mês a Helmut Kohl e a François Mitterrand e a outros Chefes de Estado europeus, para decidirem criar a moeda única. Depois de quatro anos de crise, que esperam ainda os nossos dirigentes políticos para darem oxigénio às nossas finanças públicas? O mecanismo que propomos poderia aplicar-se imediatamente, tanto para reduzir o custo da dívida antiga como para financiar os investimentos fundamentais para o nosso futuro como, por exemplo, um plano europeu para economia de energia. Aqueles que pedem a negociação de um novo Tratado Europeu têm razão: com os países que o quiserem é necessário construir uma Europa política capaz de agir sobre a globalização; uma Europa verdadeiramente democrática como o propôs já Wolfgang Schäuble e Karl Lamers, em 1994, ou Joschka Fischer em 2000. É necessário um tratado de convergência social e uma verdadeira governação económica. Tudo isto é essencial. Mas nenhum novo Tratado pode ser adotado se o nosso continente se continua a enfiar numa "espiral da morte" e em que os cidadãos continuam a detestar tudo o que vem de Bruxelas. A urgência é então a de enviar um sinal muito claro aos povos europeus, às pessoas: a Europa não está nas mãos dos lobbies financeiros, a Europa está ao serviço dos cidadãos. Michel Rocard, antigo primeiro-ministro e Pierre Larrouturou, economista Michel Rocard é também o Presidente do Conselho de Orientação de Terra Nova, desde 2008. Pierre Larrouturou é também o autor de "Pour éviter le krach ultime" (Nova Editions, 256 p., 15€)