segunda-feira, 29 de junho de 2020

Saudades



" São saudades de um mundo que tem cheiro de quintal lá da infância da gente. Que é macio para todos os seres que nem lençol recém-trocado. Que tem o timbre de voz amada quando toca o nosso ouvido. Um mundo bacana onde as vezes pessoas têm clima de passeio. Onde não existem armas, visíveis ou não. Onde a gente vive com o sentimento de estar brincando de roda uns com os outros: se um leva um tombo reflete na roda inteira. São saudades de um mundo contente feito céu estrelado. Feito flor abraçada por borboleta. Feito café da tarde com bolinho de chuva. Onde a gente se sente tranquilo como se descansasse num cafuné. Onde, em vez de nos orgulharmos por carregar tanto peso, a gente se orgulha por ser capaz de viver com mais leveza. Um mundo onde as pessoas confiam umas nas outras, não pode ser de outro jeito se estamos em família na humanidade. Um mundo onde a culpa deixou de ser uma desculpa para não sermos felizes. São saudades de um mundo onde o respeito não tem cheiro de mofo: todos somos iguais e todos somos diferentes e isso é claro, natural e indiscutível."


Ana Jácomo

quinta-feira, 25 de junho de 2020







Luis Júdice
23 de junho ·



O governo, os partidos do arco parlamentar e a comunicação vendida ao grande capital hão-de ter de explicar como é que os números deste quadro se compaginam com os "comportamentos condenáveis" que, segundo eles, levaram a repor o confinamento e o estado de calamidade em 5 distritos do país - Loures, Sintra, Odivelas, Amadora e Lisboa.


Vão ter de explicar, também, como é que para o "surto" agora identificado contribuíram, em cerca de metade dos casos identificados, idosos e trabalhadores de lares para a chamada 3ª idade. Querem ver que andaram TODOS numa "velocidade furiosa" a correr as "raves", a encharcarem-se em álcool, adquirido em bombas de gasolina como se não houvesse amanhã, com o único objectivo de contrair COVID-19?!!!


Governo e apoiantes das medidas de confinamento policial e repressivo imposto às populações, têm de ser responsabilizados pelas 4 mil mortes não COVID-19 a mais registadas este ano, por comparação com período homólogo do ano de 2019. E pelo crescendo do desemprego, da miséria e da fome, que nenhuma "caridadezinha" mitigará, antes agravará a humilhação a que sujeitam os trabalhadores e suas famílias.

domingo, 21 de junho de 2020

“Se voltarmos à normalidade é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas”, escreve Ailton Krenak



Em novo livro, um dos mais importantes líderes indígenas do país fala sobre a pandemia do coronavírus, a "necropolítica" de Bolsonaro e os ensinamentos que podemos tirar desta experiência



Ailton Krenak na Flip de 2019. Foto: Walter Craveiro/ Divulgação

O mundo está agora numa suspensão. E não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. É como um anzol nos puxando para a consciência. Um tranco para olharmos para o que realmente importa”, escreve Ailton Krenak em O Amanhã Não está à Venda (disponível para download gratuito). Um dos mais importantes líderes indígenas brasileiros da atualidade – famoso por sua marcante fala na Assembleia Constituinte de 1987 e por seu intenso ativismo socioambiental -, Krenak acaba de lançar pela Companhia das Letras este pequeno livro com reflexões sobre os tempos de pandemia da Covid-19 e o mundo que virá a seguir.

“O presidente da República disse outro dia que brasileiros mergulham no esgoto e não acontece nada. O que vemos nesse homem é o exercício da necropolítica, uma decisão de morte. É uma mentalidade doente que está dominando o mundo. E temos agora esse vírus, um organismo do planeta, respondendo a esse pensamento doentio dos humanos com um ataque à forma de vida insustentável que adotamos por livre escolha, essa fantástica liberdade que todos adoram reivindicar, mas ninguém se pergunta qual o seu preço”, afirma Krenak – autor também do livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo (2019) – em outro trecho do texto.

O autor, que no momento está isolado na aldeia Krenak, em uma reserva de quatro hectares em Minas Gerais, questiona, portanto, a ideia de “volta à normalidade”, ressaltando que ela não é nem possível nem desejável. “O que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por instante. Não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa. ‘Filho, silêncio’.” E, mais à frente, ele arremata: “Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. (…) Seria como se converter ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que devemos seguir nos devorando. Aí, sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira”.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Muitos sobreviverão à Covid 19, mas permanecerão mortos por dentro



Muitos sobreviverão à Covid 19, mas permanecerão mortos por dentro. E o pior é que teste médico algum é capaz de diagnosticar isso.

Por Prof. Marcel Camargo
-27 de abril de 2020

A pandemia da Covid 19 coloca o mundo de cabeça para baixo, colapsando sistemas económicos e de saúde, expondo a nefasta desigualdade social que existe, desmascarando a verdadeira face de pessoas, de governos, de religiões. Nada mais será como antes, ninguém mais conseguirá se ver com os mesmos olhos.

Na ânsia por encontrar respostas e causas que dêem alguma lógica a isso tudo, somam-se teorias conspiratórias, lendas urbanas, fantasmas do comunismo, supostos golpes políticos, entre outros palpites sem embasamento satisfatório. Quase ninguém, porém, atenta para a negligência humana em relação à natureza e às necessidades básicas dos cidadãos, que perdura há séculos.

Fomos nos distanciando, ao longo do tempo, da espiritualidade, da religiosidade, da valorização daquilo que nos compõe a essência e não se pode comprar. Fomos colocando, como centro de tudo, o consumo e a materialidade, regidos pelos ditames económicos, mesmo que às custas de desigualdades cada vez mais acirradas.

Fomos nos distanciando da natureza e dos animais, em suas necessidades e exigências, enquanto nos contentávamos com jardins de inverno arquitectónicos e com animais de estimação. Fomos nos afastando do auto-conhecimento, que precisa do olhar sobre o outro. Aliás, o outro passou a ser menos importante do que a satisfação de nossos próprios desejos, fechados que muitos estamos em nossa bolha de conforto.

Isso tudo vai deixando as pessoas insensíveis, frias, incapazes de serem atingidas pelas misérias de quem quer que seja. Empatia zero. Isso impede que o ser humano enxergue as terríveis consequências de seu descaso com o meio ambiente, com a fauna e com a flora. Impede, da mesma forma, que o ser humano perceba o quanto machuca as pessoas, o quanto suas atitudes podem ser nocivas ao todo – a alguns só interessa o eu mesmo.

Não é à toa, portanto, que muitos assistem às cenas dantescas dos estragos causados pela pandemia da Covid 19, no Brasil e no mundo, incapazes de se escandalizarem, mesmo com valas colectivas sendo abertas, caminhões com refrigeração estacionados às portas de hospitais e de cemitérios, filas de ambulâncias paradas nos hospitais à espera de leitos vagos. Em nome da manutenção da economia, que deveria ser bem melhor respaldada pelos governos, os quais mal direccionam verbas e mal cortam gastos supérfluos, cogita-se afrouxar o isolamento, mesmo quando esse procedimento já tenha se comprovado ineficaz e perigoso em contextos precedentes.

Quando se julga qual vida tem mais ou menos valor, é sinal de que a humanidade caminha mal. Nada será como antes. Quem não melhorar após tudo isso, não melhorará nunca mais. Muitos sobreviverão à Covid 19, mas permanecerão mortos por dentro. E o pior é que teste médico algum é capaz de diagnosticar isso.

sexta-feira, 5 de junho de 2020