terça-feira, 17 de julho de 2018



O Dicionário de Oxford elegeu o verbete “pós-verdade” como a palavra do ano. Segundo os autores, pós-verdade seria a circunstância em que fatos objetivos possuem menos importância que as crenças individuais. Num mundo dividido em bolhas virtuais, cada pessoa montaria sua realidade de acordo com as suas crenças e não como o resultado do confronto entre as ideias e a experiência sensível.

Penso que, pior que os boatos, que as mentiras, são as verdades selecionadas. É possível mentir dizendo apenas a verdades. Tal método não é novo, mas continua sendo um dos mais eficazes. Como no exemplo abaixo.

O site Spotinik é muito eficiente em fazer esse tipo de manipulação. A missão desse blog é bem simples: provar a qualquer custo que o liberalismo radical é a única forma aceitável de pensar a política. Mas e se a realidade mostrar algo diferente? Problema dela. Eles a adaptam a imagem e semelhança da teoria.

Poucos conferem os números apresentados, caso sejam do agrado do leitor, os dados são aceitos e ajudam a reforçar o universo ideológico que aprisiona e impede o pensamento crítico.

O texto abaixo é um belo exemplo desse método de manipulação. Nele, não há nenhuma referência bibliográfica. Apenas indicadores que contam com a fé do leitor. Como nunca fui muito afeito à religião, resolvi conferi-los.

Por sorte, descobri a fonte na qual os autores do blog se basearam. Trata-se da coleção História da América Latina da Universidade de Cambridge (Volume IX) Essa coleção é monumental (só o volume nove tem 1110 páginas). É o melhor estudo geral sobre a história da America Latina. Eles teriam dados suficientes para escrever um ótimo texto. Mas não era esse o objetivo. Na verdade, a intenção é defender o liberalismo a qualquer custo e não analisar a história da forma séria.

Vamos lá: na página 201 o manual diz que Cuba tinha uma das maiores rendas da América Latina (374 dólares). Diz tbm que somente México e Brasil superavam Cuba em número de rádios. A ilha tbm era a primeira do continente em quantidade de jornais, telefones e veículos a motor. Por fim, o livro diz, nesse mesma página, que o analfabetismo era de 20% (o Spotinik inverteu, não pega bem falar em analfabetismo, então eles colocaram 80% de letrados, não é mentira, mas o efeito é mais positivo. Tbm esqueceram de dizer que esse número é referente à capital Havana.).

Até aí tudo certo. O problema é que eles pinçaram esses números. Procuraram dados positivos no meio de uma série de outros negativos. O que é mais importante, número de rádios ou água corrente? Apenas 15% da população tinha água encanada. De fato, havia muitos rádios, mas só 9% dos lares do campo possuíam eletricidade. O analfabetismo no interior chegava a 50%. Em 1957 17% da população ativa estava desempregada e o subemprego chegava a 13%. Os que restavam empregados, em sua maioria, cortavam de cana. A profissão de boia fria, como nós brasileiros conhecemos bem, está longe de ser a mais desejada pelos jovens. Sem falar que o corte de cana é sazonal e apenas 30% dos trabalhadores conseguiam emprego o ano inteiro. Dois terços da renda de Cuba vinha das exportações para os EUA. O capital americano controlava 90% da telefonia (por isso o número alto de aparelhos telefônicos). A economia aberta fez de Cuba um país sem indústria. Caso um trabalhador pobre quisesse fugir da miséria, teria que trabalhar com o turismo. O problema é que essa atividade só existia em pouquíssimos lugares e era muito concentrada em Havana.

Enfim, há mais números, mas eu acho melhor parar aqui. A minha pergunta é: pq os dados negativos foram ignorados pelo autor do texto? Essa coleção de Cambridge é umas das fontes mais confiáveis e certamente o Spotinik se baseou nela. Mas eles escolheram a dedo o que iria ser mostrado. Afinal, é preciso que as informações passem pelo filtro ideológico do blog antes de chegar ao rebanho. Não queriam informar, mas manipular. Reforçar verdades pré-fabricadas.

No dia 04 de dezembro de 2016, data do enterro do Fidel, dois milhões de pessoas foram às ruas se despedir do presidente. Fulgencio Batista morreu em 1973, exilado na Espanha. Nesse caso, não houve choro, vela e nem fita amarela. O reconhecimento também é um fato social importante e, muitas vezes, diz mais sobre um povo que os números frios.

Eduardo Migowski


Sem comentários: