quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

"Incomodada ficava sua avó"


A frase é boa, mas não é minha. "Incômodo" era a palavra que as mulheres de mil novecentos e bolinha usavam para se referir à menstruação, e a marca de absorventes internos Tampax fez o trocadilho deste título em uma propaganda. Hoje ninguém mais usa essa expressão, mas nem por isso a referência direta à menstruação deixou de ser um incômodo. A fobia é tanta que - pode reparar - nenhum comercial de absorvente usa essa palavra.


Esse distanciamento se reflete na linguagem, mas é na relação da mulher cissexual consigo que ele se torna abismal. Quantos mililitros de sangue seu corpo elimina a cada mês? Como é o cheiro da sua menstruação? É da mesma cor que o sangue que sai de um corte? Tem a mesma textura? É bem provável que estas perguntas soem estranhas, quiçá nojentas. Talvez a própria palavra menstruação já cause incômodo em algumas pessoas. Melhor dizer que estamos "naqueles dias", assim não provocamos nenhum constrangimento.


É assim quando o feminino se expõe: mostre uma vagina ou fale sobre a vagina e o mundo se escandaliza. Ela precisa ser escondida, sob o risco de ameaçar o monopólio do pênis como símbolo de potência. Lembro-me da minha menarca e da vergonha que ela me trouxe. Eu estava, como se diz por aí, "virando mulher", e isso me trazia... vergonha. Telefonei para casa e quem atendeu foi meu pai. Ele me pressionou para que eu dissesse por que estava estranha e eu me vi obrigada a cometer a mais alta transgressão: revelar meu ser mulher.



Não importa: aqui vamos falar de vagina sim, e vamos falar sobre pêlos, sobre secreções, sobre histórias de parto humanizado. E hoje falaremos sobre menstruação.


A primeira coisa a ser dita é que não há nenhuma razão para ter nojo da menstruação. Nojo é um sentimento que nos impele a nos afastar de algo, o que pode ser muito útil no caso de fezes, ratos, ou outras coisas que possam colocar nossa saúde em risco. A menstruação, no entanto, sinaliza saúde. Não se trata de guardar o sangue para cultuar nele o feminino sagrado, mas de compreender que não há porque temê-lo. Pelo contrário: o sangue menstrual contém informações preciosas sobre o funcionamento do corpo da mulher, podendo sinalizar DSTs, anemias e outros problemas. Dar atenção à menstruação é algo tão saudável quanto acompanhar a pressão sanguínea.


Os absorventes que encontramos nas farmácias ou supermercados - aqueles que jamais mencionam a menstruação - vão na contramão desta intimidade com o próprio corpo. Com pequenas variações, as repetitivas propagandas vendem a ideia de que com o produto estaremos "mais limpas". Não chega a ser um milagre do calibre de converter água em vinho, mas a menstruação virou sujeira e nós nem percebemos. Mas não sejamos injustos: a Publicidade está apenas reproduzindo - e faturando com - uma ideia mais velha do que Eva e Adão. Não saberia dizer quem a inventou, mas há muitos anos uma turma de homens escreveu um livro importante sobre isso. O volume emplacou de tal maneira que hoje se acha gente em qualquer canto contando a estória da moça que comeu o que não devia, induziu seu companheiro, coitado!, a comer também, e deixou seu pai furioso. É por causa desse erro, diz o livro, que a mulher sente dor ao parir. Mais pra frente o livro adverte: enquanto houver sangue fluindo de dentro da mulher, ela ficará impura e ninguém deverá tocá-la. Pra não restar sombra de dúvida sobre o caráter das regras, os autores repetem à exaustão que também se torna impuro tudo e todos que tocarem a mulher durante o período menstrual.

Então ficou decidido assim: a menstruação é suja e fedida. A mulher maculou toda a humanidade com seu erro (mais pra frente o tal livro fala sobre um homem que teria vindo pra redimir a humanidade, mas isso é outra estória), e todo mês passará uma semana isolada em sua impureza.


Quando, muito anos depois da publicação do referido livro, outra turma de meninos descobriu que a menstruação é tão somente um pedaço do ciclo que prepara a mulher para uma eventual gravidez, o estrago já estava feito. Mas a indústria de absorventes, generosa que só ela, vem fazendo o possível pra aliviar a barra das mulheres. Menção honrosa para o sabonete íntimo, porque não está certo vagina ter cheiro de vagina.


Chega de fábulas. Vejamos o que acontece na vida real quando compramos um absorvente e o colocamos dentro ou junto da nossa - vamos repetir? - vagina.

Quando o sangue menstrual entra em contato com o ar, inicia-se uma série de reações que você não quer que aconteçam ali, do lado de fora da sua vagina. É a festa da uva das bactérias: matéria orgânica rica em nutrientes e o seu calorzinho gostoso. É por isso que os absorventes contém perfumes: para neutralizar o odor que eles mesmos produzem. Se a mulher tiver feito a lição de casa direitinho e não houver pêlos na região, a exposição será maior, já que o contato será ainda mais direto. Pois é, os pêlos que a gente aprende desde o útero a odiar são a nossa calcinha natural, mas esse assunto merece um texto só pra ele.


Sobre o absorvente interno: a vagina é um local úmido, e permitir que o fluxo sanguíneo escorra livremente mantém essa condição. Os absorventes internos não querem saber de conversa: sugam tudo que é líquido, inclusive a secreção que mantém úmido o canal vaginal.


Além de tudo isso, os absorventes comuns produzem uma quantidade gigantesca de lixo ao longo da vida da mulher. Mas bem, who cares?, não é mesmo?


Dessa discussão sobre saúde - física e emocional - da mulher, nasceu o coletor menstrual. Esse copinho de silicone medicinal (hipoalergênico e antibacteriano) fica acomodado no canal vaginal mais ou menos como um absorvente interno. Custa em torno de sessenta reais e dura de cinco a dez anos - o que significa dizer que sua popularidade pode custar muito dinheiro às fábricas de absorventes.
Quando a mulher retira o copinho, lá está seu sangue. É possível conhecer sua textura, seu cheiro - de sangue, pasmem. Linhas horizontais ajudam a medir o volume do líquido, o que pode inclusive ajudar a diagnosticar uma anemia. É possível descartar o sangue no chuveiro ou na privada, mas vamos nos lembrar de que aquilo ali é matéria orgânica. Não é sujeira e não precisa de tratamento para retornar à natureza, por isso algumas mulheres fertilizam suas plantas com seu sangue, causando verdadeiro horror nos vaginofóbicos.


A menstruação é um dos infinitos exemplos de como a mulher é destituída de si mesma em função de sua utilidade. Nesta lógica puramente mercadológica, inventa-se o nojo, demoniza-se a menstruação e fatura-se com a venda de soluções. Não há nada de errado em desenvolver um produto bacana e lucrar com ele, mas fazer isso às custas da autoestima e, em alguns casos, da saúde da mulher é... corriqueiro.

Passem pra cá nossos corpos: nós é que vamos decidi-los.

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