quinta-feira, 20 de agosto de 2015

O Direito ao Delírio - Eduardo Galeano*

Via Anabela de Araújo

"Mesmo que não possamos adivinhar o
tempo que virá, temos ao menos o direito
de imaginar o que queremos que seja.
As Nações Unidas tem proclamado extensas listas de
Direitos Humanos, mas a imensa maioria da humanidade
não tem mais que os direitos de: ver, ouvir, calar.
Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar?
Que tal se delirarmos por um momentinho?
Ao fim do milénio vamos fixar os olhos mais para lá da
infâmia para adivinhar outro mundo possível.
O ar vai estar limpo de todo veneno que não venha dos
medos humanos e das paixões humanas.
As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelo supermercado, nem serão assistidas pela televisão.
A televisão deixará de ser o membro mais importante da família.
As pessoas trabalharão para viver
em lugar de viver para trabalhar.
Se incorporará aos Códigos Penais
o delito de estupidez que cometem os que vivem por ter ou ganhar ao invés de viver por viver somente, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca.
Em nenhum país serão presos os rapazes
que se neguem a cumprir serviço militar,
mas sim os que queiram cumprir.
Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida
à quantidade de coisas.
Os cozinheiros não pensarão que as lagostas gostam de ser fervidas vivas.
Os historiadores não acreditarão que os países
adoram ser invadidos.
O mundo já não estará em guerra contra os pobres,
mas sim contra a pobreza.
E a indústria militar não terá outro remédio senão
declarar-se quebrada.
A comida não será uma mercadoria nem a comunicação
um negócio, porque a comida e a comunicação
são direitos humanos.
Ninguém morrerá de fome, porque ninguém
morrerá de indigestão.
As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.
As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.
A educação não será um privilégio de quem possa pagá-la
e a polícia não será a maldição de quem
não possa comprá-la.
A justiça e a liberdade, irmãs siamesas,
condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se,
voltarão a juntar-se bem de perto,
costas com costas.
Na Argentina, as loucas da Praça de Maio serão um exemplo
de saúde mental, porque elas se negaram a esquecer
nos tempos de amnésia obrigatória.
A perfeição seguirá sendo o privilégio
tedioso dos deuses, mas neste mundo,
neste mundo avacalhado e maldito, cada noite será vivida como se fosse a última e
cada dia como se fosse o primeiro."



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