sábado, 27 de janeiro de 2018

“Vemos Ouvimos e Lemos, Não Podemos Ignorar”

 “Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

 Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror”

Extrato do poema “ Cantata da Paz”
De Sophia de Mello Breyner Andresen

Quase todas(os) nós conhecemos o poema, ou pelo menos o refrão da Cantata da Paz
da autoria de Sophia de Mello Breyner Andresen, pois ele foi cantado durante muitos
 anos por várias vozes e entre elas, talvez a mais ouvida tenha sido a de Francisco
Fanhais.
A grandeza da poesia é a sua universalidade. Sophia de Mello Breyner estava a pensar
em África e no Vietname, como este poema refere, no entanto hoje a África e o
Vietname são outros, e os relatórios continuam a dizer-nos que a fome não foi
erradicada, que o fosso entre ricos e pobres aumentou, que o terror está a dominar as
nações: umas a instaurá-lo, querendo difundi-lo, outras a defenderem-se dele, querendo
isolar-se. E o que a poesia nos diz, é que o nosso sentir (o nosso, homens e mulheres
livres e de bons costumes) é universal.

Mas, vemos, ouvimos e lemos o quê? O que nos aparece? O que nos expõem ou impõem? O que procuramos?

Olhamos e não vemos, ou não queremos ver, ou olhamos e prestamos atenção?

Ouvimos e não escutamos, ou ouvimos, escutamos e entendemos?

Vemos, ouvimos e lemos. Como?

Como espectadores? Como atuantes?

Damos sentido às palavras que lemos? Ou

Murmuramos e não falamos ou

Desfrutamos e não amamos?

O que sentimos perante aquilo que vemos, ouvimos e lemos? Envolvimento ou distanciação?

Não podemos ignorar! Será que não ignoramos muitas vezes? E, se não ignoramos, o que fazemos?

Vemos, ouvimos e lemos e permitimos que se ignore.

Sim, muitas vezes permitimos.

Permitimos

porque nos tornamos cegos, surdos e mudos, devido à alienação, à ganância e à inveja e ao comodismo.

As notícias que nos chegam através dos “Mídea”, são muitas vezes mais sensacionalistas do que a procura isenta dos factos. Procuram muitas vezes chocar e não informar. Somos bombardeados com todo o género de notícias tantas vezes ao dia, com as mesmas desgraças às horas das refeições, que por vezes o cidadão comum vira a cara para o lado, para não ver tanta miséria e sofrimento. Por vezes, nem nos damos conta de que a notícia já não faz eco dentro de nós. É a banalização da notícia, de tantas vezes que se ouve ou vê cria o habito e a indiferença.

Diariamente somos confrontados com a globalização da comunicação. A “competição” pelo primeiro lugar em dar a notícia, mostrar um vídeo, disparar uma foto, transformase numa luta renhida. Perdem-se valores, cautelas e sensatez, na falta de edição e sensibilidade. Tudo e nada é notícia, desde os flagelos, ao terrorismo e atentados à liberdade.

Mas o que vemos, ouvimos e lemos é-nos transmitido através de veículos cuja idoneidade cívica, política e moral, urge questionar. É sabido que são usados filtros na informação que nos é transmitida, que variam consoante a vontade política e social de momento. É sem dúvida uma teia difícil de penetrar, controlar e contornar.

Muitas vezes, em conflito com o nosso pensamento, somos conduzidos a manifestarmonos e a tomarmos posições sobre assuntos dos quais pouco sabemos, como que se a simples opinião politica e socialmente bem aceite, fosse suficiente para aliviar as nossas consciências e bastasse o suficiente para nada mais fazer.

Ouvimos premissas, cujas bases desconhecemos, olhamos a factos sem saber o contexto e o enquadramento que levaram a determinadas decisões.

Mas mesmo assim, o Cidadão actual crê-se conhecedor e como tal opinador privilegiado dos diversos aspectos da actualidade, que como acabamos de dizer, são muitas vezes alvo de projecções pouco credíveis e até mesmo manipuladas, fazendo lembrar a célebre alegoria de Platão do homem na caverna de costas voltadas ao Mundo real.

Mas independentemente desta verdade/informação em segunda mão, o certo é que não podemos ficar indiferentes face ao mundo de notícias que nos chega ao conhecimento, e que nos dá conta duma falta de valores humanos aterrorizadora.

E porque vemos, ouvimos e lemos é que não podemos ignorar e sobretudo não podemos deixar de agir.


1 - Factos que mais nos preocupam

Os problemas de hoje são problemas de todos e afectam vários países e povos, pelo que a abordagem começa a ser global.

São muitos os que fogem das guerras, no futuro iremos ter provavelmente, refugiados ambientais em consequência da degradação acelerada do ambiente, que ultrapassa fronteiras e países.

Todos os dias ouvimos falar sobre a dignidade da vida humana, e a importância do sofrimento na vida das pessoas, e estamos na eminência de permitir que se conflua o seu término a uma simples escolha, sem o importante esclarecimento das opções alternativas, bem como das principais variáveis envolventes. Num contexto social particularmente sensível, em que se discute a forma de legislar sobre o fim da vida humana, não podemos ignorar a maneira como se discute a eutanásia, tentando reduzir a morte de um ser humano a um simples acto médico. Passa-se para segundo plano a importância de amar e ser amado independentemente da condição física.

Vemos, ouvimos e lemos que existe um mar, um mar perto de nós, que é também sepultura de milhares que aspiram à liberdade. De facto, no momento actual, é a crise dos refugiados que logo nos ocorre. Drama humano de enormes proporções, drama de quem parte, de quem fica, e de quem acolhe. Em zonas longínquas ou mais próximas são de novo as pessoas, e em particular os mais frágeis, que protagonizam e encarnam o que as (más) decisões políticas têm de pior.

Não podemos ignorar os relatos diários de mães e filhas vítimas de relacionamentos abusivos, muitas vezes também elas protagonistas dos mesmos crimes que se perpetuam perante a sistemática desvalorização da violência que se exerce no seio da família.

Não podemos ignorar a existência dos sem-abrigo no nosso país, de fome, miséria, casas desabitadas, degradadas e pessoas a viver nas ruas, à chuva, ao frio, ao vento, ao calor… Como é possível, empresários lançarem novos produtos, pensando em lucro e não em solidariedade, quando colocam no mercado sacos cama para aquecer os semabrigo, mas esquecem que deveriam antes disponibilizar estas verbas para a reconstrução das habitações que as autarquias têm em seu poder, dando-lhes condições de habitabilidade, para poderem realojar pessoas sem lar inserindo-as na sociedade.

Numa foto de refugiados que vi recentemente, há 7 homens e 1 mulher e até aqui nada de especial! Ao observar atentamente, vemos que a mulher tem os pés descalços, cuida de três crianças, e dessas três, traz uma ao colo e outras às costas. Nenhum homem a ajuda e todos eles trazem sapatos calçados, porque nas suas culturas a mulher não representa nada. Ela apenas serve para ser escrava dos homens. A história das mulheres 4 continua a não ter nada a ver com a história dos homens. A armadilha da indiferença apanha-nos a todos, pois aquilo que nos choca à primeira vez, quase nos deixa indiferente nas vezes seguintes. De tal maneira a realidade se torna insuportável aos nossos olhos, que instintivamente descolamos dela. Abstraímos e tentamos não sentir nada, pois as dores de sentir ser-nos-iam realmente intoleráveis.

Vemos, ouvimos e lemos que em nome de um Deus, homens e mulheres de todos os credos e fés são queimados, degolados, assassinados a sangue frio ou violados coletivamente.

Não podemos ignorar que a geo democracia ainda está longe da sua plenitude, e a cada dia que passa é lentamente devorada por outros interesses mais globalizantes e símbolos de servidão.

Não podemos ignorar as assimetrias sociais que se vivem perto e longe de nós, cuja solução seria fácil se não fossem a ambição, os poderes instituídos, os lóbis financeiros e as engenharias económicas.

Na realidade, uma “ténue linha do acaso,” que fez uns nascerem no lado certo da fronteira, tem sido ignorada ao longo dos séculos. Nobreza e povo, burguesia e proletários, brancos e negros, cristãos e hereges, nómadas, mulheres, homossexuais, idosos, tudo serve, como sempre serviu, para retirar ao Outro o valor da sua dignidade.

Todos fomos Charlie, todos nos colorimos das bandeiras de França e Bélgica, mas face aos recentes acontecimentos em Orlando ninguém é gay, ninguém levanta a vós para defender uma comunidade com a qual poucos fazem questão de se identificar, particularmente se for de diferente orientação sexual.

Vemos, ouvimos e lemos, que milhares de crianças têm o seu futuro completamente comprometido por não terem acesso à educação. “Uma criança sem acesso a educação é um estigma da humanidade e temos que mudá-lo”, afirmou Kailash Satyarthi, Prémio Nobel da Paz.

Muitas destas situações e tragédias ocorrem na União Europeia, onde os alicerces fundamentais da nossa história são baseados na liberdade, democracia e solidariedade, princípios esses gravados na carta dos direitos fundamentais. Estamos numa aldeia global, onde se assiste ao evoluir do conceito de cidadania. Os problemas de hoje são problemas de todos e afectam vários países e povos, pelo que a abordagem têm de ser abrangente. Graças à ampliação dos meios de comunicação, a informação circula cada vez mais rapidamente ao nível planetário, o que leva a que comecem a nascer movimentos globais que envolvem cidadãos de vários países.


2 - Reflexão e Acção

Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar"... Os 3 patamares desta frase dão origem a um triângulo em que, na sua base, temos os órgãos dos olhos e ouvidos, ascendendo à parte neurológica associada ao processo da leitura e terminando o triângulo no cimo, ao nível da consciência, condição essencial para que não se possa ignorar.

Um outro triângulo, agora descendente, está presente na união entre olhos, ouvidos e o coração, uma outra forma de não se ignorar, bem presente no célebre Principezinho, de Saint-Exupéry.

Nós somos Cidadãs Livres, somos Maçonas, somos mulheres comprometidas com a comunidade e com o país e com o mundo, Vemos Ouvimos e Lemos não podemos ignorar. Este refrão é um grito de inquietação contra a indiferença que tantas vezes nos atinge. É um apelo que nos encoraja e nos leva à reflexão, à mudança, à construção de um mundo mais solidário, mais humanista. À construção de um templo de homens e mulheres, unidos pela compaixão, pelo respeito pelo outro, pela intervenção ativa e luta sistemática pela paz.

Mas qual é o papel da Maçonaria ou o que a Maçonaria tem feito no que diz respeito particularmente a este tema dos refugiados ou outro tipo de intervenção social? O nosso trabalho não é confinado ao templo e não termina à meia-noite. Lá fora todas e todos temos um papel individual, não poderemos deixar de colaborar agindo no nosso país. Cada um de nós deverá ser um agente da mudança, não só na comunidade, mas também na nossa família.

Recuemos ao século XVII e recordemos as palavras do Padre António Vieira, sábias, visionárias até tendo em conta o que é hoje a modernidade e os seus conflitos políticos, sociais e religiosos. Dizia ele, que um dia muitos serão julgados pelo que fizeram e muitos mais pelo que não fizeram e pelo que silenciaram.

Hannah Arendt, a filósofa política alemã, de origem judaica, uma das principais combatentes do nazismo, considerava que o mal não é apenas o fruto de homens doentes, mas é sobretudo o resultado da cumplicidade da maioria que ouve e vê, mas ignora e permite.

Quantas vezes colocamos a questão: E se fosse connosco? Se víssemos uma jovem a ser esbofeteada pelo namorado? E se víssemos um casal de homossexuais ser verbalmente agredido e humilhado porque estão de mão dada? E se víssemos um idoso a ser maltratado? Paremos 2 minutos para pensar: Sim, se fosse connosco, o que faria cada uma de nós? Agia? Calava? Acelerava o passo e fugia? E se aquela namorada fosse a nossa filha? E se aquele idoso fossemos nós? E se a notícia que lemos esta manhã no jornal dissesse respeito a uma situação de violência e violação dos direitos humanos na casa do nosso vizinho? Agíamos? Ou seria mais fácil ignorar?

Maçonas e Maçons, nós que defendemos os valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade não nos podemos demitir de ser agentes de mudança dos problemas sociais. É essencial sermos membros ativos da sociedade na busca da equidade, da igualdade de oportunidades e de todos vivermos em harmonia numa sociedade mais justa e mais fraterna.

É preciso que cada um de nós chame a atenção do outro e apele à intervenção, é preciso que cada um de nós dê pequenos grandes passos, mesmo em casa faça exercícios plenos de cidadania como a reciclagem do lixo. É preciso ainda que os meios de comunicação social colaborem como mensageiros de massas e um grande exemplo disso é precisamente o programa de televisão “E Se Fosse Consigo?”, que quase involuntariamente nos leva a pensar qual seria a nossa própria reacção, perante determinada situação, a acontecer ali, diante de nós, violadora dos direitos humanos.

Uma maçona, não se pauta por dogmas nem tão pouco por pensamentos estereotipados. O seu pensar é livre, objectivo, claro, por forma a poder ser consequente e agir em prol da humanidade. Por isso há que lutar contra esta remissão para o “ fundo da caverna” onde são projectadas as verdades de outrem, cuja adequação nem sempre é verdadeira nem inocente. Hoje mais do que nunca, porque temos a ilusão de tudo saber, tudo conhecer em tempo real, estamos muito mais vulneráveis à manipulação do pensamento. Esta situação exige de nós uma maior atenção e pensamento crítico.

O trabalho da obreira é interior por certo. Mas é também exterior, na medida em que tem que continuar fora o trabalho feito em L:.

É urgente que a Maçonaria Feminina assuma um papel mais interventivo na vida da sociedade portuguesa em particular e da Humanidade em geral.

A História perguntar-nos-á a razão porque nada dissemos perante o êxodo de milhares de seres humanos que morreram à porta da Europa. Questionar-nos–à porque nada fizemos perante o flagelo da corrupção que grassou impunemente. Pedir-nos-á conta do silêncio que nos ensurdeceu e nos paralisou.

A Maçonaria Feminina, pilar indelével e sustentáculo imprescindível da Maçonaria Universal, tem de assumir a sua posição e defender a Liberdade, Igualdade e Fraternidade, numa enorme bateria de acção conjunta.

Pelo sinal nos reconhecemos. Reconheçamo-nos como mulheres interventivas e operativas.


3 - Esperança e trabalho

Nunca mais ignorar-te, Humanidade!!

Se não posso salvar-te (e como o desejo!),

Quero hoje começar a escrever contigo e para nós,

A história que tenhamos orgulho de ver, de ouvir e de ler.

A história que todos os dias fará História por ser o nosso sonho,

A nossa melodia fantástica,

Bela e plena de liberdade e esperança e que por isso,

Não a calemos nem deixemos de ouvir nunca.



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