sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Discurso de José Saramago na Academia Sueca ao receber o Prêmio Nobel de Literatura


"O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não
sabia ler nem escrever.

As quatro da madrugada, quando a promessa de um novo
dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da
enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia
e porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher.
Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena
criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos
aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província
do Ribatejo.

Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses
avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o
frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar
dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais
débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas
grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos
do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda
que fossem gente de bom caráter, não era por primores de
alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que
os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era
proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para
manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o
indispensável.

Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas
andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal
anexo à casa e cortei
lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à
grande roda de ferro que acionava a bomba, fiz subir a água
do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes,
às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó,
também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e
corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois
haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em
noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse:
"José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira". Havia
outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a
maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para
toda as pessoas da casa, a figueira.

Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só
muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que
significava... No meio da paz noturna, entre os ramos altos da
árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente,
escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra
direção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu
côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o
Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na
aldeia.

Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as
histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas,
aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas,
zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um
incansável rumor de memórias que me mantinha desperto,
ao mesmo tempo que suavemente me acalentava.
Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de
que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não
deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente
lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele
calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvez repetisse
as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer,
quer fosse para as enriquecer com peripécias novas.

Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem
será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo
era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira
luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já
não estava ali, tinha saído para o campo com os seus
animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava
a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até
aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo,
passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se
encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a
pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela
de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha
dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido
das histórias do avô, ela sempre me tranqüilizava: "Não faças
caso, em sonhos não há firmeza".

Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma
mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô,
esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto
José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas
com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o
meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem
feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também
acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar
que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre
casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e
menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas
palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de
morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer,
como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido
a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a
graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação
da beleza revelada.

Estava sentada à porta de uma casa como não creio que
tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu
gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus
próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só
porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô
Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir
que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do
seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando
porque sabia que não as tornaria a ver."

José Saramago

Sem comentários: