quarta-feira, 1 de janeiro de 2020


Lei de Bases da Saúde de 1990: os resultados estão à vista
Isabel do Carmo
Médica; professora da Faculdade de Medicina de Lisboa; activista política

Público • 29 de Junho de 2019

Tenho pena de não ser hacker, gostava de ser, mas já não tenho idade para isso. Mostro apenas números que são públicos e demonstrativos.


Os princípios e a prática decorrentes da Lei de Bases da Saúde (LBS) de 1990, ainda em vigor, deram consequências no Serviço Nacional de Saúde (SNS), cujos resultados são agora evidentes em algumas áreas e são os seus autores que contra eles mais vêm reclamar.
A falta de ginecologistas-obstetras e de anestesistas nos serviços públicos aí está para demonstrar.

Diz a Lei de Bases de 1990 no seu número II: “É apoiado o desenvolvimento do sector privado da saúde (...) em concorrência com o sector público.”

Esta lei, aprovada no Parlamento pelo PSD e o CDS quando estes tinham a maioria, foi a base para o boom dos serviços privados de Saúde e para a sua expansão económica. E para ela concorre também o subfinanciamento do SNS, com a consequente degradação dos equipamentos e da remuneração dos profissionais, apenas interrompido entre 2005 e 2009.
O problema não é pois de hoje nem de ontem e não se vai resolver facilmente, sobretudo se o espírito da LBS perdurar como estamos em risco de acontecer.

Iniciadas as políticas neo-liberais no seu pleno em 1979/80, uma das duas revistas médicas norte-americanas de maior prestígio, o New England Journal of Medicine, lançava o alarme e denunciava através do seu editor-chefe, Dr. Arnold Relman, o que ele chamou “the new medical-i ndustrial complex”, descrevendo “a grande e crescente rede das corporações privadas envolvidas no negócio de venda de serviços de saúde aos doentes com o objectivo de lucro, serviços anteriormente fornecidos por instituições sem fins lucrativos ou profissionais individuais”.

As ondas concêntricas portadoras deste espírito do complexo médico-industrial chegaram a Portugal e concretizaram-se na lei de 1990.

E aí estão. Só da ADSE, nos últimos quatro anos, o grupo Luz somou 356,4 milhões €, o grupo Mello 192,5 e os Lusíadas 172,4. Como é que o contrato com a ADSE podia acabar?! E só em 2018 o SNS pagou aos privados em meios complementares de diagnóstico e terapêutica e outros subcontratos 1234 milhões €, não entrando nesta conta as Parcerias Público-Privadas (PPP) com contratos específicos. Este é o fluxo financeiro.
A ele está associado o fluxo humano.


Os grupos privados têm folga para atrair médicos e enfermeiros com melhores remunerações e com práticas diárias com menos stress.
De igual modo, as PPP’s contratam os médicos especialistas com valores que podem ser o dobro dos hospitais com gestão pública e os contratos excluem os chamados serviços de ponta, tal como a presença de especialistas em determinadas áreas a partir das 20 horas. Assim conseguiram atrair muitos valiosos profissionais.

A remuneração média líquida de um médico no SNS é de 1617€, com poder de compra inferior a 2011 se for considerada a inflação. Se for um especialista, muitos de alto gabarito com exercício de métodos ao mais alto nível dos protocolos internacio nais, fez uma licenciatura de seis anos, um ou dois anos de Internato conforme o ano, um exame de entrada na especialidade de enorme preparação e rigor, cinco anos de especialidade com avaliações anuais. Um exame final teórico e prático culmina este percurso.

Conclui-se pois que, em contas de 2017, há 21.897 médicos militantes do SNS nos serviços públicos (este número inclui os médicos das então quatro PPP’s existentes). E são 36.883 enfermeiros.
Apesar disto, os médicos de 2016 para 2017 aumentaram para mais 914 e os enfermeiros são mais 863.
No entanto, a tentação da oferta privada é forte, por vezes há muitos filhos a sustentar e as urgências públicas são extenuantes e incluem fins-de-semana. Tenho colegas próximos que saíram do público para o privado com grande tristeza dos próprios e dos colegas, como se fosse um abandono da casa-mãe, mas apontaram exactamente as razões descritas acima. O cumprimento efectivo das carreiras médicas e a exclusividade bem remunerada tem de fazer parte das soluções.
Mas a situação actual requer contratação rápida que não tenha que passar obrigatoriamente pelo Ministério das Finanças e, se passar, terá que ser expedita.

Vamos então ao caso dos ginecologistas-obstetras.
Dos 1400 obstetras registados na Ordem dos Médicos, só 850 trabalham no SNS. Este fica portanto só com 61% destes especialistas e os outros ou emigraram, ou estão nos grupos privados ou trabalham à tarefa, neste último caso ganhando mai s à hora do que o chefe de equipa.
Na última fornada de especialistas de obstetrícia saída em 2018, só metade ficou nos serviços públicos. Funciona a tal lei da concorrência.

Dir-se-á que com tantos e “tão bons” privados a questão dos partos estava resolvida. Não. Os partos de risco só podem ser realizados nos Centros de Referência, os públicos, no caso da região de Lisboa, o Centro Hospitalar Lisboa Norte (H. S. Maria), a Maternidade Alfredo da Costa, o Hospital de São Francisco Xavier e o Hospital Amadora-Sintra, este último com muitos partos porque cobre uma população jovem. A necessidade da grávida ir a um Centro de Referência advém do risco dela própria (por exemplo, doença cardíaca, outra já existente ou hipertensão arterial) ou da criança.

Dos 233 óbitos de crianças com menos de um ano em 2017, 67,4% foram neonatais. Mesmo as PPP’s não têm neonatologia e referem para o hospital de gestão pública da área. Portanto, o privado e as PPP’s são só bons para os casos fáceis e o público é para os casos difíceis.

A opção dos profissionais também tem que ter isto em consideração, tanto mais que metade dos obstetras tem mais de 55 anos e podia, se quisesse, não fazer urgências, o que não acontece, mais uma vez por militância... Também acontece com os anestesistas, especialidade m uito stressante nos casos difíceis pois têm a vida ou a morte literalmente nas mãos e a presença nos cuidados intensivos é muito exigente. Está bem de compreender a distribuição do fluxo dos profissionais. A prática de anestesia nos privados é mais tranquila, além de mais bem remunerada. Também no bloco operatório do Hospital de Santa Maria há uma falta dramática de anestesistas que leva a que esteja a funcionar a 50% e claro que a traumatologia e os tumores têm prioridade, sendo adiadas as cirurgias das colunas com doenças crónicas degenerativas.

Estes problemas não são apenas actuais, vêm de trás e não é fácil resolvê-los. A rotação das urgências para os partos, sem que os serviços fechem, é a solução, como em anos recentes o foram para a oftalmologia e a psiquiatria.

O resultado do apoio do “desenvolvimento do sector privado da saúde em concorrência com o sector público”, como consta da actual LBS, aí está demonstrado.

O sector privado fica com o filet mignon, aumenta os lucros, tem “boa gestão”, e o sector público emagrece, tem dívidas (também aos privados) e recebe os casos difíceis e caros.

Estranho é que o Grupo Parlamentar do PS esteja a negociar com a raposa que guardou estas galinhas públicas.

E não se pode acreditar que uma lei de tal importância para o futuro seja elaborada em consequência de uma imprevidência do Bloco de Esquerda ou de jogos eleitorais que apenas dizem respeito à conjuntura dos próximos meses.

Tenho pena de não ser hacker, gostava de ser, mas já não tenho idade nem capacidade para isso... Mostro apenas números que são públicos, embora saiba que em grande parte se destinam a uma entropia para os interessados. Mas são demonstrativos.

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