domingo, 30 de julho de 2023

Cimeira Rússia-África: um marco no caminho para o mundo multipolar



SCF [*]


A Cimeira Rússia-África desta semana não poderia ter sido realizada num momento mais oportuno das relações internacionais. O evento simboliza uma mudança global seminal, que, em última análise, anuncia um futuro melhor para a humanidade, apesar da perigosa e terrível desconexão brutal associada a essa mudança no presente.

Em meio à terrível guerra por procuração com a Rússia que a NATO alimenta na Ucrânia, líderes de quase 50 nações africanas participaram no fórum de dois dias em São Petersburgo, organizado pelo Presidente russo Vladimir Putin.

O conflito na Ucrânia dura há mais de 500 dias e corre o risco de se transformar numa guerra mundial entre os Estados ocidentais liderados pelos Estados Unidos e a Rússia.

Washington e os seus aliados da NATO têm rejeitado qualquer tentativa de pôr fim à guerra sangrenta por meios diplomáticos. As vozes africanas que imploram uma solução pacífica têm sido rejeitadas com a típica arrogância ocidental.

Na verdade, as potências ocidentais estão a escalar a violência de forma imprudente, incitando o regime de Kiev, que tomou o controlo da Ucrânia através de um golpe apoiado pela CIA em 2014, a empenhar cada vez mais infantaria num conflito suicida.

Esta guerra causou estragos no abastecimento mundial de alimentos e nos preços, que atingiram impiedosamente os 1,3 mil milhões de habitantes de África. A Rússia é o maior fornecedor mundial de trigo e outros cereais, representando cerca de 20% do total. A Ucrânia é responsável por cerca de 7%.

É claro que a guerra teve um grande impacto no abastecimento e nos preços a nível mundial. Mas quem começou este conflito e quem está a impedir o seu fim? Os Estados Unidos e a sua chamada aliança de segurança, a NATO, assumem toda a responsabilidade.

"Por um lado, os países ocidentais impedem o fornecimento dos nossos cereais e fertilizantes e, por outro, culpam-nos hipocritamente pela atual situação de crise no mercado alimentar mundial", declarou o Presidente Putin na cimeira de São Petersburgo.

Em 17 de julho, a Rússia retirou-se de um acordo da ONU sobre cereais com a Ucrânia, negociado no ano passado. Esse acordo deveria garantir o transporte marítimo das exportações agrícolas ucranianas através do Mar Negro, em troca do fim das sanções unilaterais (e ilegais) impostas pelo Ocidente às exportações russas. O lado ocidental do acordo não foi implementado.

Quando o regime de Kiev bombardeou pela segunda vez a ponte de Kerch para a Crimeia, em 17 de julho, a Rússia cancelou imediatamente o acordo sobre os cereais. O ataque mortal à ponte, que matou dois civis russos, foi apenas a gota de água para Moscovo. Há muito que o acordo de transporte marítimo era utilizado de forma abusiva por não honrar as obrigações relativas ao levantamento das sanções russas, bem como devido a provas de que os cargueiros ucranianos também haviam sido utilizados para transportar secretamente armas da NATO, como os drones submersíveis implicados no ataque à ponte de Kerch.

Apesar das sanções económicas do Ocidente, no ano passado a Rússia conseguiu exportar mais de 11 milhões de toneladas de trigo e outros cereais para os países africanos. Durante a cimeira desta semana, Putin garantiu que este fornecimento de produtos alimentares básicos continuaria a ser feito aos mercados africanos. O Presidente russo anunciou igualmente grandes exportações adicionais de cereais a título gratuito para várias nações africanas em risco agudo de insegurança alimentar.

A soberania alimentar esteve no topo da agenda da cimeira. A Rússia comprometeu-se a assegurar o fornecimento de cereais a África, independentemente das quebras nas exportações ucranianas.

Os nauseantemente ricos membros americano e europeus da NATO acusam Moscovo de "transformar a fome numa arma" e de "atingir os pobres do mundo".

Os dados da ONU mostram que a parte de leão (mais de 80%) das exportações da Ucrânia ao abrigo do acordo agora extinto foi transacionada para países de rendimento alto e médio. A África e outros países de baixo rendimento receberam apenas cerca de 3% das exportações agrícolas ucranianas. A Rússia era, de longe, o principal fornecedor, apesar das sanções ocidentais destinadas a bloquear este comércio. As potências ocidentais fizeram uma grande jogada de "humanitarismo" ao promoverem o acordo sobre os cereais. No entanto, os beneficiários não foram os países pobres, mas sim um punhado de nações ricas, bem como o regime de Kiev, que retribuiu a tolerância da Rússia com ataques terroristas a infraestruturas civis.

As nações africanas, bem como muitas outras do Sul Global, compreendem o que está realmente em causa no conflito da Ucrânia. Trata-se dos Estados Unidos e de um grupo de potências ocidentais a tentar manter a sua hegemonia em declínio. Isso reflete-se no facto de os Estados africanos adotarem uma posição ambivalente nas Nações Unidas em relação ao conflito. O continente, tal como outras regiões do Sul Global, rejeitou os esforços do Ocidente para os arrastar a um isolamento da Rússia no estilo da Guerra Fria.

Também historicamente, África beneficiou do apoio da Rússia à independência do controlo colonial e neocolonial do Ocidente. Existe uma imensa boa vontade e solidariedade residuais para com a Rússia, enquanto potência que nunca teve a bagagem perniciosa da ingerência imperialista como tiveram os Estados Unidos e os europeus. Os políticos americanos e europeus depreciam África como um "buraco de merda" e os africanos por quererem invadir o "nosso jardim".

A defesa de Moscovo de relações mundiais multipolares e de um respeito genuíno pela soberania nacional (e não as lisonjas retóricas dissimuladas do Ocidente) tem um profundo eco nas nações africanas.

O presidente da União Africana, Azali Assoumani, que partilhou o pódio com Putin esta semana, afirmou que o continente aprecia muito a solidariedade e o empenho da Rússia na independência e soberania totais.

Por seu lado, Putin observou que a soberania não é uma conquista única, mas sim um estatuto permanente que precisa de ser continuamente reforçado, defendido e afirmado. O líder russo referia-se implicitamente ao facto histórico de que, embora muitas nações africanas tenham alcançado a independência política das potências coloniais europeias após a Segunda Guerra Mundial, continuaram a ser prejudicadas no seu desenvolvimento através de vários meios insidiosos de controlo neocolonial sobre o financiamento e o comércio.

O enorme potencial da África como potência mundial ainda não se concretizou, em grande parte devido aos legados colonialistas em curso. Este facto, por si só, constitui uma acusação vergonhosa e uma revelação das falidas pretensões de virtude do Ocidente.

No entanto, o mundo está a mudar rapidamente e o domínio hegemónico do Ocidente está a desfazer-se e, com isso, as nações africanas podem esperar novas possibilidades de desenvolvimento prodigioso.

A forte presença de nações africanas na cimeira de São Petersburgo é testemunho do desejo e da determinação de abraçar um novo mundo multipolar, um mundo onde a África pode emergir com um êxito esplêndido e sem restrições. As potências ocidentais tentaram ao máximo pressionar o continente a boicotar a cimeira. Mas esses velhos e sujos truques não conseguiram travar a maré da história.

Com a parceria adequada de um mundo multipolar, a riqueza natural de África será para o desenvolvimento do seu povo e não para o enriquecimento das potências ocidentais que roubaram e subjugaram o continente durante séculos.

O golpe de Estado ocorrido esta semana no Níger contra um presidente apoiado pelo Ocidente é revelador da crescente agitação em África contra as velhas formas de tutela ocidental. Nos últimos três anos, a África Ocidental assistiu a sete golpes de Estado contra regimes patrocinados pela França ou pelos EUA. Tal como no Níger, esta semana, os manifestantes têm agitado bandeiras russas no que pode ser considerado um desafio simbólico a Washington e aos lacaios neocoloniais europeus.

Seja como for, retornemos ao tema principal da cimeira Rússia-África. A questão fundamental é a soberania nacional e a soberania alimentar. Isto pode ser conseguido sem a dependência das potências ocidentais ou dos jogos dos seus representantes em Kiev sobre as exportações de alimentos. Tal como acontece com as exportações de energia da Rússia, não há necessidade de um "intermediário" ucraniano a enganar toda a gente.

Para além disso, há um quadro muito mais significativo e mais vasto à nossa frente. O potencial agrícola de África, se devidamente aproveitado, poderia fazer com que o continente se tornasse não só suficiente em termos alimentares, mas também um poderoso exportador de alimentos para o resto do mundo. O único obstáculo a esse futuro benéfico são as restrições políticas e económicas arbitrárias da elite ocidental sobre outras nações. Esses privilégios e controlos elitistas sobre nações inteiras são tão anacrónicos como outros males como a escravatura e a exploração.

O desafio da Rússia às presunções ilegítimas de hegemonia do Ocidente, manifestadas no conflito da Ucrânia, bem como a promoção da independência multipolar da Rússia em relação aos mecanismos nefastos do domínio ocidental (o dólar americano, as sanções unilaterais, a dívida financeira, etc), estão do lado certo da história.

A adesão fraterna da África a essa visão é profundamente justa e é mais um prego no caixão da moribunda hegemonia ocidental.

28/Julho/2023

[*] Strategic Culture Foundation
O original encontra-se em strategic-culture.org/news/2023/07/28/russia-africa-summit-timely-milestone-on-road-to-multipolar-world/
Este editorial encontra-se em resistir.info

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