sábado, 28 de outubro de 2023

Palestina. O problema que o Ocidente criou e não pode resolver



As consequências políticas da operação do Hamas de 7 de outubro (com mais três organizações da resistência palestina) são hoje tão evidentes como eram imprevisíveis há quatro semanas atrás. Os ecos que teve em toda a Palestina mostram que a acção foi acolhida pelas massas populares como uma resposta sua à ocupação israelita, e não como uma intervenção desvairada de um qualquer grupo terrorista isolado da população, como Israel e o Ocidente querem fazer crer.
Uma causa com eco mundial
A causa da independência da Palestina não só foi reanimada como foi trazida para primeiro plano das questões políticas mundiais. Durante praticamente uma década, foi abafada deliberadamente pelo Ocidente, ignorada por muitos dos países árabes e desleixada pela própria Autoridade Palestina, acomodada em Ramalá. Subitamente, porém, todos estes actores foram obrigados a definir-se e a tratar do assunto.
A mobilização popular no mundo árabe e muçulmano foi maciça, forçando os governos renitentes a tomar o partido dos palestinos e a demarcar-se de Israel e dos próprios EUA, perfeitamente entendidos como os mentores do estado sionista e corresponsáveis pelos seus crimes.
Mobilização semelhante teve lugar no resto do mundo, nomeadamente nos países do arco imperialista, desde os EUA ao Reino Unido, a toda a Europa, ao Brasil ou à Austrália — o que mostra que a causa da liberdade da Palestina não se confina aos palestinos. O valor político desta mobilização é evidente: todos os manifestantes sabem que apoiar a Palestina significa enfrentar o sionismo e o imperialismo.
EUA a falarem sozinhos
O isolamento dos EUA ficou patente na incapacidade para sequer conversar com países normalmente seus aliados, como a Jordânia ou o Egipto, na humilhação a que o secretário de Estado Blinken foi sujeito pelo governo da Arábia Saudita e no regresso de Biden a casa de mãos vazias quando pretendia juntar os adeptos do costume à sua volta.
Obrigados a apoiar Israel sem reticências, mas cuidando também de salvar a face diante das barbaridades prometidas por Netanyahu, os EUA revelaram-se como hipócritas em quem não se pode confiar e de quem não se pode esperar qualquer via de solução para o problema.
Ficou igualmente patente a vacuidade política da UE e da Europa em geral, não apenas pelas contradições entre os seus líderes, mas também pelo desprezo a que os seus emissários foram votados pelas lideranças árabes e muçulmanas. (Na verdade, está patente aqui também uma consequência do avassalamento a que a Europa foi sujeita pelos EUA na sequência da guerra na Ucrânia, não sendo de desprezar o facto de, com isto, os EUA perderem um ajudante que lhes poderia ser útil em momentos de grande crise, como é o caso.)
Forçados pelas circunstâncias
Diante dos acontecimentos, os dirigentes da Arábia Saudita e da Turquia, que ensaiavam manobras de aproximação com Israel, tiveram de recuar e declarar apoio aos palestinos. Erdogan sentiu-se mesmo obrigado a negar a natureza terrorista do Hamas e a reconhecê-lo como representante da resistência palestina, em clara afronta ao Ocidente.
Também o secretário-geral da ONU, António Guterres, normalmente dado a jogos de equilibrismo, se sentiu forçado a dizer o mínimo: que a acção do Hamas tem de ser compreendida à luz da “ocupação sufocante” exercida por Israel.
Nem mesmo esse mínimo impediu o ministro israelita dos Negócios Estrangeiros de soltar urros na Assembleia Geral da Nações Unidas e exigir a demissão de Guterres. Seria uma exigência solitária se não tivesse, entre nós, a colaboração prestimosa do Chega e da Iniciativa Liberal que, também neste particular, mostram o que os faz correr e que ideias professam.
Israel sem saída
A face terrorista do Estado de Israel e a mentalidade nazi dos seus governantes está patente nas próprias declarações por eles proferidas. Por trás da linguagem troglodita, fica a nu a incapacidade do poder israelita em olhar para o problema político que tem no colo, tudo se reduzindo, na sua óptica vesga, ao uso da força bruta para tirar desforra.
Mas em que medida e até quando a população israelita — que experimentou na pele a insegurança e a violência que antes de 7 de outubro parecia só atingir os palestinos — vai acreditar que a brutalidade prometida por Netanyahu é a solução para a sua vida?
O facto de os EUA terem tido necessidade de deslocar forças navais consideráveis para a região, e de terem já participado com tropas suas em incursões em Gaza, mostra que o imperialismo norte-americano não acha que Israel seja capaz de arcar com o problema, mesmo no estrito plano militar — levando em conta a amplitude regional das forças envolvidas, do Irão ao Líbano, da Turquia ao Iémen.
Por mais que Israel e os seus apaniguados no Ocidente queiram denegrir a resistência palestina com base no 7 de outubro, ou classificar o Hamas como terrorista para o desqualificar como força política, a evidência das imagens que relatam em directo o genocídio praticado pela tropa israelita suplantam tudo o que de mais violento possa ter sido feito pelo Hamas contra os israelitas.
Mais de sete mil mortos (*) e vinte mil feridos palestinos, na maioria mulheres e crianças, comparam mal, mesmo aos olhos mais inocentes, com os anunciados 1.400 mortos israelitas, dos quais mais de 300 terão sido militares e polícias. As pessoas comuns sabem estabelecer proporções.
Ocidente fora do baralho
A resposta que Israel mostra não ter capacidade para dar é, obviamente, de natureza política. O Ocidente cola-se a esta posição sem saída por necessidade absoluta de não perder a testa de ponte que desde 1948 tem no Médio Oriente. Mas isso afasta-o também, ao Ocidente, de ser interlocutor na busca de soluções para o conflito.
Cada vez mais, a questão israelo-palestina vai deixando de ser determinada pela acção exclusiva das potências externas à região, nomeadamente os EUA e a UE, para ser um problema dependente da intervenção dos actores regionais do Médio Oriente. É o que quer dizer a posição, se não unânime, pelo menos convergente de todas as potências e forças políticas da região — Arábia Saudita, Egipto, Irão, Turquia, Síria, Iémen, Iraque, Líbano e até o Paquistão — no sentido de defenderem o direito dos palestinos à independência.
A independência da Palestina tornou-se nas últimas semanas causa de todo o mundo árabe e muçulmano. A recusa do Egipto e da Jordânia em abrirem fronteiras aos palestinos de Gaza, empurrados pelos bombardeamentos israelitas — recusa esta que comentadores tão obtusos como manhosos acham uma negação do direito humanitário — compreende-se perfeitamente do ponto de vista político: fazê-lo seria facilitar a limpeza étnica (a “solução final”) que Israel leva a cabo à mão armada e criar condições para sapar o direito dos palestinos à sua própria terra.
Padrão comum
Há um padrão comum ao comportamento do Ocidente imperialista nos dois grandes conflitos em curso.
Na Ucrânia e em Israel, não hesita em recorrer aos indivíduos e às organizações mais brutais, de natureza abertamente fascista e nazi se necessário for, para levar a cabo os seus desígnios de poder — desígnios estes que não representam nenhum caminho de progresso para a humanidade, nenhuma defesa de liberdade ou democracia em benefício dos povos, mas apenas a manutenção do estado de coisas vigente.
Na Ucrânia como na Palestina, os EUA e a UE, mais uns quantos aliados, mostram-se como o partido da guerra, incapazes de entenderem, e sobretudo de aceitarem, a trama política em que os conflitos se desenrolam. E não aceitam porque sabem que a evolução natural dos acontecimentos, se decorrer em termos pacíficos, conduz à erosão da sua hegemonia sobre o mundo.
Na verdade, o ocidente imperialista não se defronta apenas com as grandes potências que directamente o desafiam, a Rússia e a China — defronta-se com um número crescente de países e de povos que rejeitam a sua tutela e se agregam para ganhar força contra um inimigo comum.
A revolta palestina e a solidariedade que tem suscitado é a mais recente manifestação desta tendência global.
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(*) 7028 mortos, segundo uma lista publicada no dia 26 pelo ministério da Saúde de Gaza indicando nome exacto, sexo, idade e número de identificação dos falecidos. O Hamas respondeu assim às afirmações provocatórias de Biden que pôs em causa o número de mortos palestinos vítimas dos bombardeamentos israelitas. Os números referem-se a Gaza, excluindo os mortos na Cisjordânia. Em Gaza, no dia 25, havia mais de 18 mil feridos, e mais de 1.500 pessoas, das quais 630 crianças, estavam ainda debaixo de escombros.
Números da Autoridade Palestina do dia 26 dão conta de 177.781 casas destruídas, 260 unidades de saúde atacadas, e ainda 1.900 feridos e 104 mortos na Cisjordânia.
Autor: Manuel Raposo
Fonte: https://www.jornalmudardevida.net/.../palestina-um.../


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